Medicamentos com descontos: uma mentira cativante

Medicamentos com desconto: uma mentira cativante

“Na vida é preciso ter muito cuidado com o que ouvimos. Há mentiras cativantes e verdades sem graça. Isso costuma confundir a razão.” Carlos Hilsdorf

JOÃO PEDRO GEBRAN NETO

Desembargador Federal no TRF4. Mestre em Direito pela UFPR. Coautor do livro “Direito à saúde”, com Clênio J. Schulze

1. A judicialização da saúde é uma realidade posta perante o Poder Judiciário nacional, com mais de dois milhões de ações judiciais em tramitação sobre o tema do direito à saúde, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça1. Vários deles de solução difícil ou impossível, como o fornecimento de medicamento para doenças raras, fornecimento dos chamados medicamentos órfãos pelo SUS ou, ainda, a realização de procedimentos no exterior, para ficar em poucos exemplos.

Os principais debates referem-se a hard cases, os quais exigem a atuação de um juiz Hércules, na figuração de Ronald Dworkin2. Em casos tais, impõe-se ao magistrado solucionar os conflitos de interesses e as lacunas legais em matérias extremamente complexas, geralmente fundadas em direitos fundamentais – como a vida dos indivíduos, a saúde da coletividade, a distribuição justa de recursos, escolhas em cenários de escassez e racionamento, competência para deliberar sobre políticas públicas, dentre outros limites.

Ocorre que estes importantes e difíceis debates costumam ofuscar problemas muito mais singelos, mas que afligem a imensa maioria (senão a quase totalidade) da população brasileira, como a efetividade do sistema público de saúde, a regulação dos planos de saúde, os reajustes das mensalidades dos planos, a eficácia e o adequado atendimento da saúde pública na atenção primária e até mesmo o preço dos medicamentos no mercado consumidor.

2.Dentro deste segundo contexto que se insere o tema do presente texto: a revisão dos preços dos medicamentos pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos, a conhecida tabela CMED, criada pela Lei nº 10.742/2003, em substituição à Câmara de Medicamentos3.

“A regulação de preços praticada pela CMED ocorre em duas etapas. A primeira consiste em determinar os preços de entrada dos medicamentos no mercado brasileiro. A segunda consiste na aplicação da fórmula de reajustes anuais. A lista de preços da CMED é subdividida em três partes, sinalizando preços distintos: preço de fábrica (PF), preço máximo ao consumidor (PMC) e preço máximo de venda ao governo (PMVG). Ressalta-se que medicamentos isentos da necessidade de prescrição médica para consumo são desobrigados de atender ao controle de preços da CMED”, consoante explicam CAMPOS e FRANCO4. A partir do segundo ano, os preços passam a sofrer apenas reajustes consoante fórmula da CMED, mas sem revisão dos critérios para sua fixação.

Sem embargo das críticas que se fará, deve-se consignar que a regulação do preço de medicamentos é uma virtude de nosso sistema, de modo a permitir – em tese – a fixação de preços razoáveis para que os produtos sejam acessíveis à população5. Aliás, a história demonstra que, durante o período em que houve liberdade de preços, estes produtos essenciais sofreram de altas excessivas de preços6. E, no ponto, registre-se que a experiência de flexibilização de preços noticiada pelo Secretário Executivo da CMED deve causar preocupação7 8.

Igualmente preocupante – essa é a essência do presente escrito -, que os preços dos medicamentos nunca tenham sido objeto de criterioso escrutínio anual, mas somente objeto de atualização por meio de sucessivos índices anuais de correção monetária.

Veja-se que, a despeito da pandemia que assola o país, com atividade econômica nacional reduzida em face do isolamento social e fechamento de indústrias e comércios, veio à luz a Resolução CMED nº 01, de 1º de junho de 2020, reajustando valores de medicamentos em percentual que varia entre 3,23% a 5,21%.

Não se discutem os acertos ou erros dos critérios utilizados pela Câmara para fixação dos diferentes índices de correção. Mas, na linha daquilo que expuseram CAMPOS e FRANCO, a partir de pesquisas comparativas entre os preços CMED e os valores de aquisição em Minas Gerais, há “grandes distorções entre estes e os preços-teto definidos pela CMED. Tais resultados, acrescidos da análise do modelo regulatório adotado pela CMED, permitiram afirmar que a regulação vigente ou não apresenta os efeitos desejados, ou favorece a perpetuação de sobrepreços nas compras públicas de medicamentos9“.

Assim, o que causa espécie não é a atualização anual dos valores10, mas a previsão legal de sua revisão sem levar em conta os preços praticados na vida real. Essa distorção não pode ser atribuída exclusivamente aos medicamentos que já estavam aprovados antes da criação da Câmara (2003), pois se reflete também nos produtos que vieram a ter seus preços fixados depois da criação do órgão regulador, como anotado por Nathalia Miziara11.

Como não se escandalizar com descontos oferecidos em farmácias que atingem percentuais não verificáveis em outros setores varejistas? São muitas as práticas estranháveis, que vão desde cadastro do consumidor perante a indústria farmacêutica, a partir dos quais se obtém preços muito reduzidos, até descontos concedidos porque se tem a carteirinha de sócio de um clube de futebol, assinatura de um jornal ou de um plano de saúde. E mesmo que não se tenha nenhum “cartão de fidelidade”, os preços praticados pelo mercado são totalmente divorciados do preço máximo ao consumidor fixados na tabela CMED.

Os consumidores acostumaram-se a pedir descontos em medicamentos, como se fosse algo trivial. Cadastram-se em laboratórios para obtenção de preços diferenciados, acreditando que foram bafejados pela sorte ou foram escolhidos porque são clientes fieis. Todavia, tudo isso não passa de uma mentira cativante. Por trás dela há uma verdade sem graça. Os preços estão artificialmente inflados permitindo que estabelecimentos comerciais e indústrias concedam descontos em percentuais extraordinariamente altos, não visto em qualquer outro ramo do comércio.

O comércio de medicamentos não pode ser equiparado com o de um produto ordinário, dada sua essencialidade para a manutenção da vida e da saúde das pessoas. Trata-se de um mercado cuja regulação é indispensável para assegurar desde a qualidade e segurança daquilo que a venda é autorizada em território nacional, como o acesso dos indivíduos ao produto.

Assim, o estabelecimento de preços distorcidos da realidade – fixados a partir de resoluções, cujos preços somente podem ser reajustados para cima –, quando o mercado pratica valores muito inferiores12, padece de clara violação aos princípios constitucionais que norteiam a ordem econômica13.

A norma e sua prática confrontam, dentre outros, os princípios da função social da propriedade e a defesa do consumidor (art. 170, III e V, da Constituição Federal, respectivamente). Igualmente, o artigo 196 da Carta Política estabelece a saúde como direito de todos e dever do Estado, cumprindo a este desenvolver política pública social que busque promover o acesso universal e igualitário às ações de saúde, sendo evidentemente inconstitucionais a legislação e a política pública que afastam o acesso dos indivíduos, com o aumento de preços em patamares muito superiores ao da própria prática comercial. Por fim, a compreensão que os preços somente podem ser reajustados é violadora do dever de monitoramento da evolução de preços de medicamentos, equipamentos, componentes e insumos, previsto no art. 7º, XXV, da Lei nº 9.782/1999, que criou a ANVISA.

A Lei nº 10.742/2003 estabelece critérios para revisão compostos de três fatores (art. 4º, § 1º). Um fator monetário, fundado no IPCA (art. 4º, § 2º), e outros dois fatores estabelecidos a partir do mercado: um fator produtividade, que autoriza repassar ao consumidor ganho de produtividade (art. 4º, § 3º); e outro fator de reajuste decomposto em parcelas intra-setorial e setorial (art. 4º, § 4º).

Se a composição de todos estes fatores culminar em índices negativos, não há qualquer óbice legal na minoração do preço praticado. Assim como não há vedação legal para a revisão individualizada do preço de cada medicamento, independentemente do ajuste anual da tabela CMED. É certo que a modificação legislativa seria muito mais adequada, como proposto por Nathalia Miziara14, de modo a clarificar a questão. Todavia, independentemente de revisão legal, a ANVISA iniciou um procedimento que busca rever a Resolução nº 02/2004 – como adiante se verá –, o que bem demonstra que a modificação legal não é imprescindível para ajustar as práticas administrativas.

A distorção de preços da tabela CMED foi objeto de preocupação por parte do Tribunal de Contas da União15, que assentou a baixa elasticidade dos preços dada a essencialidade dos medicamentos e o limitado poder decisório do consumidor face à vinculação à prescrição médica. Ainda, anotou o relator haver “distorções em preços fixados pela CMED, os quais se situavam “em patamares bastante superiores aos praticados nas compras públicas”. Em amostra de 50 princípios ativos, na comparação com o mercado internacional, verificou-se que, “em 43 deles, o preço registrado no Brasil está acima da média internacional; – em 23, o país possui o maior preço entre os países pesquisados; e, – em três, tem o menor preço”. Há casos em que os preços de tabela apresentaram valores cerca de 10.000% superiores aos dos preços praticados em compras públicas”.

Essas distorções levaram o ministro-relator a recomendar a “revisão do modelo regulatório de ajuste dos preços dos medicamentos previsto na Lei 10.742/2003, de forma a desvincular tal ajuste da inflação e que considere revisões periódicas a partir de critérios como comparação internacional, variação cambial e custo dos diferentes tratamentos”; c) determinar à Cmed, entre outras medidas, que apresente ao TCU “nova metodologia de cálculo do fator de preços relativos intrassetor de forma a considerar no ajuste anual dos preços dos medicamentos o poder de mercado”16.

Nesse mesmo sentido é a conclusão de CAMPOS e FRANCO a partir de dados do Estado de Minas Gerais17, anotando sobre os preços para aquisição pela administração pública estadual que “foram encontradas grandes distorções entre estes e os preços-teto definidos pela CMED. Tais resultados, acrescidos da análise do modelo regulatório adotado pela CMED, permitiram afirmar que a regulação vigente ou não apresenta os efeitos desejados, ou favorece a perpetuação de sobrepreços nas compras públicas de medicamentos. A revisão do modelo regulatório instituído pela Lei n. 10742 (2003) faz-se necessária em prol do interesse público, contribuindo para o acesso universal à assistência farmacêutica e assim à saúde”.

Embora ambas as orientações acima tenham por objeto as compras de medicamentos por parte do Poder Público, a gravidade dos problemas anotados também repercutem no âmbito privado, cujos reflexos para os consumidores não podem ser ignorados.

No tocante às compras feitas por entes públicos, para além da revisão das tabelas de preço, as compras centralizadas por meios de consórcios de municípios têm sido uma solução eficiente para reduzir custos de aquisição, evitar fraudes às licitações e otimizar a logística de distribuição nos estados. Exemplo disto é o Consórcio Paraná Saúde18, que reúne quase que a integralidade dos municípios paranaenses19, cujas compras de medicamentos são realizadas por preços muito abaixo dos valores fixados na tabela CMED20 21.

Porém, os consumidores ficam à mercê da sorte, uma vez que a regulação de preços não se mostra eficiente para estes, como destacado pelo acórdão do TCU, sem que possuam ferramentas adequadas para adquirir bens indispensáveis à saúde a preços razoáveis. Nessa perspectiva, podem ser ilícitos os preços fixados ou majorados a partir de critérios técnicos insatisfatórios.

Como já tive oportunidade de assentar noutro trabalho22, as decisões tomadas por órgãos técnicos, como as agências reguladoras, devem gozar de deferência judicial, mas isso não as coloca fora do alcance do Poder Judiciário. As decisões administrativas podem ser revisadas a partir de critérios técnico-científicos controláveis, observado o consequencialismo das decisões judiciais, nos termos dos artigos 20 e 21 da LINDB23.

Poucos são os precedentes jurisprudenciais sobre a tabela CMED e suas atualizações. Os raros casos que chegaram ao conhecimento do Superior Tribunal de Justiça ocorreram pela limitada via do mandado de segurança e acabaram por acolher os critérios firmados pela Câmara para ajustar a tabela de preços24 25, entendendo-se que “A Resolução CEMED 04/2006 determinou a aplicação do CAP ao preço de diversos produtos (inclusive de alto custo), impondo limitações nos preços quando adquiridos por entes estatais”. Ao passo que o “Ato impugnado que encontra respaldo na Constituição Federal e na Lei Orgânica da Saúde – LOS (Lei 8.080/90), atendendo às diretrizes estabelecidas pela Lei 10.742/2003 relativamente à implementação da política de acesso a medicamentos pela população em geral”.

Todavia, pensa-se que a solução para o problema poderia ter outra sorte, especialmente se a matéria não vier a ser deduzida em ação de mandado de segurança, como antes destacado.

3.Se no âmbito da judicialização, até o momento, não se logrou êxito em impor a revisão da tabela CMED segundo dados da realidade, a revisão dos marcos legais da liberdade econômica parece trazer boas notícias aos consumidores.

Ao mesmo tempo em que se noticiou a liberação dos preços dos medicamentos para os quais não se exige prescrição médica26, a CMED também destacou que seria prioridade sua revisar a Resolução nº 02/2004, o que deve ser havido como notícia alvissareira, desde que considerada a realidade fática dos preços praticados pelo mercado para os novos valores a serem fixados.

A partir das Leis n° 13.874/2019 e nº 13.848/201927, que dispõem, respectivamente, os direitos de liberdade econômica e a gestão e processo decisório das agências reguladoras, com a Análise do Impacto Regulatório, talvez seja possível a correção dos problemas desse jaez.

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA iniciou um processo para revisão da Tabela CMED à luz do novo regramento, mediante a Análise de Impacto Regulatório28. Nesta tarefa, propõe-se a revisão da tabela CMED, como destacado pela agência29.:

“O atual cenário tecnológico tem desafiado os reguladores a alcançar a boa regulação, e neste contexto a CMED entende que é necessário adequar os critérios de precificação e dar previsibilidade ao setor regulado e sustentabilidade ao sistema de saúde, sem gerar efeitos nocivos ao mercado e à sociedade.Assim, o aprimoramento do marco regulatório para a precificação de medicamentos será precedido por Análise de Impacto regulatório (AIR), de acordo com as diretrizes da Casa Civil e do novo modelo regulatório da Anvisa.”

A tarefa de revisão, segundo evoca a própria ANVISA, deverá contar com a participação social dos diversos agentes e interessados que atuam nesse mercado, na forma do Plano de Participação Social30, que culminará com a Análise de Impacto Regulatório – AIR e a revisão da tabela CMED.

Segundo a referida agência reguladora, a consulta pública não é meramente formal, mas deve ser efetiva, estando em aberto os canais de comunicação mesmo depois de expirado o prazo para apresentação de apontamentos no formulário e-participa. Assim, como já ocorreu o transcurso do prazo, “os interessados podem continuar se manifestando nos outros canais de atendimento da Anvisa, como Ouvidoria, Serviço de Atendimento SAT e Diagnóstico de problemas no estoque regulatório em: https://pesquisa.anvisa.gov.br/i ndex.php/148389”31.

4.Indispensável, portanto, que os envolvidos com os sistemas de saúde público, privado e suplementar participem ativamente deste processo de construção de novas ferramentas para avaliação de preços de medicamentos e revisão da tabela CMED. E, no ponto, o tempo corre em desfavor daqueles que pretendem ou desejam contribuir para o tema.

Os diferentes agentes do sistema de justiça devem igualmente colaborar nesse processo, a luz da experiência colhida nos muitos processos judiciais que versam sobre medicamentos. A discussão desses critérios de formação de preços certamente contribuirá para evitar futuras judicializações sobre o tema, sem olvidar que permitirá reduzir em muito os custos com demandas judiciais nas quais se buscam medicamentos, estejam eles incluídos, ou não, nas relações nacional, estadual ou municipal de medicamentos, ou mesmo para o consumidor final.

Somente com o esforço de todos que será possível rever a tabela CMED de modo a transformar as mentiras cativantes dos preços dos medicamentos com descontos em verdades que assegurem aos consumidores preço justo.

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