Estudos apontam que a saúde do médico é negligenciada pelos próprios profissionais de saúde
Quando a médica cardiologista Caroline Langaro, de 31 anos, ainda estava na residência em Cardiologia, percebeu que sua saúde não andava legal. Seu sono e sua alimentação estavam ruins, andava bastante estressada e ansiosa, via que gerenciava mal o seu tempo e a qualidade de vida estava a desejar. Situações comuns, quando estamos levando uma vida pouco saudável.
“Demorei para perceber, pois era tanto trabalho, tanta correria, que acabei esquecendo de mim”, relata. “No entanto, o nosso corpo é inteligente e dá sinais”. Ela conta que um mês antes de tirar férias naquele período, começou a ficar doente quase todos os dias – passando por diversas infecções e precisando utilizar antibióticos e anti-inflamatórios algumas vezes.
O mês de férias chegou, a médica logo pensou que iria descansar. O que ela não esperava era encontrar uma bolinha dolorida no pescoço. De início pensou que fosse torcicolo, entretanto, mesmo após passar por massagem, compressas e medicamentos, não teve melhora. “Os dias passaram e eu comecei a ter febre, náuseas, dor de cabeça e aquele abaulamento no pescoço só ia crescendo, dia a dia”.
Ela fez alguns exames, consultou alguns especialistas e ninguém sabia ao certo o que era. “Até que fui orientada por um colega médico a aguardar para ver se melhorava sozinho”, comenta. Ela viajou, descansou e o nódulo desapareceu.
De volta à rotina, Caroline sabia que precisava mudar e adotar hábitos melhores, como cuidados com a alimentação, otimização do tempo, atividades físicas e tempo livre para ela – curtindo a natureza e tendo momentos de autoconhecimento e espiritualidade. “E assim foi. A minha imunidade melhorou, assim como a qualidade de vida. Perdi quase 10 quilos, controlei minha ansiedade e, ainda, melhorei meu desempenho no trabalho”, destaca a médica.
Muitas histórias de médicos e médicas podem ter o mesmo enredo quando questionados sobre o cuidado com a própria saúde. Alguns casos podem até chegar ao extremo, mas outros têm a chance de o alerta servir para a mudança de hábito.
É o caso do médico endocrinologista Danilo Carvalho Luciano, de 33 anos, que conseguiu, com o apoio da esposa, a adoção de hábitos saudáveis e regrados antes que precisasse ter algum tipo de problema mais sério. “O alerta foi o discurso diário em consultório não condizente com a prática no dia a dia”, conta.
Luciano, mesmo sabendo dos incontáveis benefícios dos cuidados com a saúde, ainda não conseguia aplicar na prática e isso começou a preocupá-lo. “Enquanto isso, a saúde mental também piorava, estresse alto, sono não reparador, baixo rendimento e queda de concentração”, descreve o endocrinologista.
A relação dele com a própria saúde era puramente o conhecimento teórico e de orientação ao paciente. Em 2020, com a pandemia e com a adaptação à mudança de cidade, o autocuidado foi praticamente esquecido. Com o passar do tempo, e depois de 2021, percebendo essa falha na condução da própria saúde, ele e a esposa conseguiram estruturar uma boa rotina. “Hoje, os cuidados com a saúde física e mental são considerados parte do dia a dia e quase inegociáveis para mim e para a minha esposa”, garante.
Atualmente, o médico e a esposa praticam atividade física três vezes por semana, separam um tempo semanal para o lazer da família, possuem uma meta de tempo mínimo para o sono e descanso e reduziram o consumo de fast food.
O apoio familiar pode ser essencial, especialmente no início dessa mudança. De acordo com Fabiane Bostelmann, médica de Família e Comunidade do Programa de Cuidados Continuados da Unimed Paraná, pelas agendas tradicionalmente sobrecarregadas e cheias de responsabilidades – às vezes com privação de sono por plantões noturnos e tempo de estudo – e, ainda, as demandas de rotina familiar, social e os cuidados com a casa, mudar velhos hábitos pode demandar tempo e energia extras. “Sem um apoio logístico do núcleo familiar, com redistribuição de tarefas e reorganização de rotinas, principalmente para as famílias com crianças pequenas, torna-se inviável ao médico investir nas mudanças de estilo de vida que recomendamos diariamente aos nossos pacientes”, explica.
Para Carvalho Luciano, o apoio da esposa foi indispensável, deixando o processo mais fácil. “A motivação é bilateral, a evolução é compartilhada e comemorada e as conquistas são duplicadas. É fantástico ter alguém que partilha do mesmo objetivo e com motivações que se somam”, celebra o endocrinologista.
Entretanto, na opinião da médica de Família e Comunidade, além da família apoiando, é importante que o próprio profissional tenha iniciativa, vontade de adquirir novos hábitos e disciplina em mantê-los. “Entendo o autocuidado como essencial e básico para qualquer pessoa, mas torna-se ainda mais importante para as figuras que cuidam de outras pessoas, como nós médicos”, completa Fabiane.
Cuidar de quem cuida
Você já deve ter ouvido o ditado de que “casa de ferreiro, o espeto é de pau”. Não diferentemente, o médico que cuida de tantos acaba esquecendo de cuidar de si. O trabalho excessivo e a carga extra de envolvimento pessoal, além da famosa correria do dia a dia e a pressão da agenda e de resultados podem ser aliados para o desenvolvimento da Síndrome de Burnout, por exemplo.
O tema, segundo Fabiane, é tão relevante que, em 2014, o médico de Família e Comunidade José Agostinho Santos cunhou em um estudo (publicado na Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade) o termo “Prevenção Quinquenária”. Com o mote “prevenindo o dano no paciente, atuando no médico”, o estudo apontou um novo nível de medidas preventivas (além das primária, secundária, terciária e quaternária), “visando à melhoria da qualidade dos cuidados e da saúde nos pacientes, porém com foco no cuidador, de onde, efetivamente, emergem todos os cuidados”.
De acordo com o médico do Programa “Você Sempre Bem”, da Unimed Paraná, Caio Henrique Yoshikatsu Ueda, é preciso cuidar de quem cuida. Os médicos são treinados a cuidar do próximo. Comumente, os profissionais priorizam suas rotinas de trabalho e dedicam-se aos pacientes, mas negligenciam a própria saúde. E cuidar da própria saúde implica “equilibrarmos o trabalho e o nosso dia a dia com práticas de vida saudáveis, para que todos possam viver e envelhecer com saúde”, afirma o médico da Unimed Paraná.
Algumas mudanças na rotina já contribuem para a qualidade de vida. O médico Anderson Alves Ramos, da Gestão de Atenção à Saúde da Unimed Paraná, descreve algumas delas: regulagem do padrão do sono, alimentação adequada, além da atividade física e horas de lazer devem ser priorizados e respeitados. “As realizações de exames e de consultas de rotina ainda são bastante negligenciadas pela maioria dos médicos. Por isso, o autocuidado deve se tornar um hábito. Ao desacelerar a rotina, sobra mais tempo para cuidar de nós mesmos”, determina.
Ramos ressalta que é importante seguir as orientações recomendadas pelos próprios médicos aos pacientes. O médico geriatra e gerontólogo Matias R. Krüger, também da Unimed Paraná, concorda. “Se quero ensinar isso aos meus pacientes, preciso, em primeiro lugar, ser o exemplo e me cuidar”, destaca Krüger.
Segundo ele, muitos estudos comprovam que profissionais têm muito mais problemas de saúde pela falta de cuidado próprio. “Não é só procurar o colega médico quando sente que já tem algo errado”, aduz o médico geriatra, relatando que, atualmente, mantém exames e consultas em dia – conforme a periodicidade recomendada – além de uma alimentação saudável e a prática de exercícios físicos. “Faço muitas vezes contra a minha vontade e disposição, depois de um dia inteiro de trabalho”, confessa.
O relato do médico demonstra que, mesmo entendendo a necessidade de o discurso estar entrelaçado à prática, nem tudo são flores. É preciso constância e perseverança. Ter regularidade foi um dos aprendizados nessa relação de autocuidado da médica ginecologista e obstetra Soilén Garcia Catossi, de 38 anos.
Hoje, ela conta com uma rotina bem estabelecida de práticas saudáveis. Faz musculação de cinco a sete vezes por semana, yoga pelo menos uma vez na semana, mantém terapias e exames em dia, suplementação de vitaminas e uma folga para o lazer. “Hoje sou muito mais feliz e realizada”, diz.
No entanto, o ritmo de vida adquirido foi conquistado com persistência e constância. Por muitos anos, Soilén esteve acima do peso, mesmo indo à academia, só que sem entender a importância dessa regularidade. Em 2018, ela passou por todo o processo para realizar uma gastroplastia (cirurgia bariátrica), com profissionais e protocolos indicados. “Entretanto, na época, era mais uma questão estética e, então, no fim do processo, desisti”, conta.
Durante a pandemia, achou que não era o momento de procurar saber como estava a saúde. Em 2021, consultou com um profissional e percebeu que a saúde já não era a mesma. “Eu já estava pré-diabética e com uma esteatose hepática grave”, relata Soilén. “A obesidade vai te cobrar um dia. Pode até demorar, mas o preço chega”, completa.
Percebendo o alerta, começou, então, a praticar atividade física de forma regular e com boa intensidade. No entanto, a obesidade ainda a limitava. Em 2022, passou pelo procedimento, conseguindo diminuir o peso total que precisava. “Além da perda ponderal, tenho conseguido ganho de massa muscular de maneira significativa e, agora, tenho muita disposição”, comemora.
Nesse processo, ela aprendeu impor limites entre o trabalho e a vida pessoal. “Fazer exercícios é prioridade, não me permito ter desculpas. A única desculpa plausível é se algum bebê quer chegar ao mundo”, brinca a obstetra.
Assim como muitos profissionais, os médicos aqui retratados sofrem com o gerenciamento do tempo. Têm agendas lotadas, compromissos com pacientes, familiares, filhos, e tantos outros. Precisam de um esforço extra para cuidar de si próprios. O bom é que perceberam os alertas da vida, acreditaram que era necessário mudar. E mudaram.
Para Fabiane, o autocuidado do médico está ligado a estabelecer esses limites. “É preciso, também, desenvolver hobbies, atividades de lazer, buscar suporte emocional, autoconhecimento, cuidado espiritual, saúde financeira, além de uma melhor gestão do tempo”, complementa.
Saúde do médico em dados
A preocupação com a saúde do médico já é antiga, tendo vários estudos voltados ao tema. Em 1998, a Folha de S. Paulo publicou uma reportagem relatando que a taxa de mortalidade dos médicos nas primeiras 48 horas de internação era cinco vezes maior que de outros profissionais. A informação foi obtida por meio de um estudo produzido em uma tese de doutorado na Universidade de São Paulo (USP).
Outra pesquisa, agora mais recente, de 2022, feita pela Associação Paulista de Medicina, aponta que muitos profissionais não respeitam o próprio limite e chegam a 60 horas ou mais de trabalho por semana (24,29%). A pesquisa inédita demonstrou que dos 778 médicos respondentes, 57,97% declararam ter uma rotina de exercícios, de uma a quatro vezes por semana. No entanto, 26,99% não praticam atividade física alguma.
O assunto também é constantemente abordado pelo Conselho Regional de Medicina do Paraná (CRMPR). Segundo o presidente Roberto Yosida, já foram realizadas várias ações como plenárias para a discussão da saúde física e mental do médico, bem como o combate à dependência química e ao suicídio.
Em 2019, o CRM-PR realizou um questionário com o propósito de entender o perfil de qualidade de vida do médico no estado. “O objetivo foi conhecer o perfil sociodemográfico dos médicos e sugerir ações que pudessem melhorar a qualidade de vida desses profissionais”, explica o presidente do CRM-PR. Em 2021, foi criada a Comissão de Saúde do Médico e, no ano passado, foi criada a Comissão de Combate à Dependência Química e ao Suicídio. Além do debate, as comissões também servem para dar apoio aos médicos que precisam de acompanhamento.
Programas de Atenção à Saúde
A Unimed Paraná, por meio da Gestão de Atenção à Saúde, desenvolve uma série de programas, são eles: Ao Seu Lado, Gestantes, Primeiro Ano de Vida, Cuidados Completos, Saúde em Casa, Saúde Mental, Viva Melhor sem Cigarro, Você Sempre Bem e Cuidados Continuados.
Os objetivos desses modelos de acompanhamento, segundo Marcelo Amaro, coordenador da área responsável, são oferecer auxílio, acompanhamento, orientação e cuidado com a saúde dos beneficiários. Esses programas também incluem os médicos-cooperados e seus familiares participantes do Plano de Assistência ao Cooperado (PAC).
“Os programas acontecem de maneira proativa ao convidarmos, por meio de um time de saúde, esses beneficiários que se enquadram nos perfis de cada programa, para promover a coordenação do cuidado e, com isso, uma melhor qualidade de vida”, explica Amaro.
Saiba mais: É médico-cooperado? Conheça os programas de saúde que podem melhorar a sua qualidade de vida