Tablets, smartphones e outros dispositivos digitais são presença constante nas mãos da garotada. É comum ver crianças e adolescentes vidrados em telas em casa, em restaurantes, nos intervalos das aulas, enquanto caminham, pedalam, patinam e até mesmo ao atravessar a rua. E essa crescente dependência digital nessa faixa etária tem chamado a atenção de médicos e especialistas em Saúde Mental e Educação.
O neuropediatra Antonio Carlos de Farias atende muitos casos de dependência digital, mas raramente essa é a queixa inicial das famílias. Os sintomas apresentados costumam estar relacionados a problemas de atenção, dificuldades de aprendizagem, ansiedade e dificuldades nas relações sociais.
“Com o aprofundamento da anamnese, identificamos o pano de fundo, excesso de exposição as Tecnologias de Informação, Comunicação e Entretenimento (TICEs). Essa situação é muito prevalente em crianças com TDAH, transtorno de ansiedade, dificuldades escolares”, comenta o especialista.
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Sintomas e sinais
O médico explica que a dependência digital pode se manifestar de várias formas, como a dificuldade em se desconectar dos dispositivos, irritabilidade ou agressividade quando impedidos de utilizá-los, ansiedade extrema para reconectar-se, entre outros sintomas. E sinais, como o isolamento social, queda no desempenho escolar, mudanças de humor, negligência de responsabilidades e sintomas físicos, como dores de cabeça e problemas de visão, são indicativos desse quadro.
O médico relata que a exposição excessiva às TICEs pode modificar a estrutura e o funcionamento do cérebro, resultando em prejuízos para a cognição, emoções, linguagem, comunicação e sociabilização.
“É na fase da adolescência que fica mais aparente o descompasso entre o amadurecimento cerebral e as estruturas que modulam as emoções. O cérebro de todos os adolescentes passa por esse descompasso maturacional. A dependência digital agrava uma situação que eles naturalmente já possuem. Ficam mais vulneráveis. O resultado são comportamentos como a impulsividade, baixa tolerância à frustração, baixa noção de causa e efeito e agressividade”, informa.
Diagnóstico
É importante destacar que os sintomas e comportamentos mencionados se aplicam especificamente a casos de doença instalada, ou seja, quando crianças ou adolescentes apresentam uma condição patológica que é reconhecida pelo DSM-5 (Manual de Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais, publicado pela Associação Americana de Psiquiatria).
O DSM-5 considera o Transtorno do Jogo pela Internet como um transtorno mental diferente dos vícios em jogo de azar. Para diagnosticá-lo é necessário que os comportamentos relacionados a abstinência causem prejuízos significativos na vida do indivíduo, envolvendo sintomas comportamentais, baixo desempenho escolar e profissional, problemas de relacionamento e sociabilização, entre outros.
Abordagem integrada
Quando a dependência digital é instalada, o tratamento requer uma abordagem multidisciplinar, com a participação de um psiquiatra. A conscientização sobre os impactos do uso excessivo é essencial para envolver os jovens em um uso mais equilibrado das TICEs. Em alguns casos, pode ser necessário abordagem medicamentosa para tratar problemas de ansiedade, humor e agressividade impulsiva.
“Procuro estabelecer um ambiente de diálogo e não simplesmente de proibições e censuras. A questão é definir regras claras de uso. Equilibrar o tempo on-line com outras atividades, como estudos, exercícios físicos, interações sociais e hobbies. Porém, isto funciona quando a dependência ainda não está totalmente estabelecida. Nesse caso a abordagem é muito semelhante a situação de dependência de drogas”, conta o médico.
O especialista observa que ao ler vários textos sobre o tema, nota-se uma tendência em destacar os problemas relacionados ao uso da tecnologia. Entretanto, ele também ressalta que há benefícios significativos quando o uso é equilibrado. Os pais frequentemente se sentem culpados diante dessa questão, visto que a tecnologia está presente em todos os ambientes e simplesmente proibi-la não é a solução ideal.
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Prejuízos além da saúde
Cineiva Campoli Tono, doutora em Tecnologia, mestre em Educação e presidente do Instituto Tecnologia e Dignidade Humana, aponta três principais fatores para o aumento dos casos de dependência tecnológica em crianças e adolescentes. São eles: acesso precoce às tecnologias digitais sem considerar as características físicomotoras, perceptivas, sensoriais, intelectuais e mentais; vulnerabilidade natural das crianças e dos adolescentes aos estímulos ambientais e virtuais, que afetam os processos neuroquímicos, as capacidades cognitivas, a educação socioeducacional e o comportamento; e abandono digital por parte dos pais e responsáveis, que desconhecem ou ignoram os impactos prejudiciais do uso desmedido das tecnologias digitais.
E os problemas vão além. A especialista ressalta que, além dos prejuízos para a saúde, bem-estar e capacidades cognitivas, o transtorno de dependência tecnológica pode impactar negativamente as funções sociais adaptativas de crianças e adolescentes, fragilizando e comprometendo o convívio harmonioso.
“Infelizmente, avista-se, ainda, prejuízos para o processo de socialização de crianças e adolescentes, porque este processo é emoldurado a partir do que veem e presenciam no convívio social em que estão submetidos, e mais uma vez às vistas do neurônio espelho, estão ‘aprendendo’ com grande parte das pessoas jovens e adultas do seu entorno, que o ato de fitar telas deve sobrepujar a outras atividades, como: a leitura profunda, calma e linear de um livro, a prática de um instrumento musical, o desenho artístico e a pintura em telas, entre outras maravilhas notadamente de essência analógica que poderiam engrandecê-los em capacidades imaginativas e criativas, ao mesmo tempo ter seus direitos fundamentais garantidos”, diz.
Futuro saudável
Ela destaca que a harmonia familiar pode sofrer graves impactos com diversas situações de risco relacionadas à dependência tecnológica, resultando em desentendimentos e conflitos sobre os prejuízos decorrentes, que poderiam ser evitados caso as recomendações dos especialistas no desenvolvimento infantil e adolescente fossem seguidas.
“Com a falta de informação sobre o transtorno de dependência tecnológica, as famílias ainda não se deram conta dos problemas que assolam essas pessoas em formação na era digital. Nunca tivemos tantas crianças e adolescentes tão tristes e cabisbaixos como na atualidade”, lamenta.
Ambos os especialistas afirmam que a dependência digital não deve ser ignorada, sendo fundamental que pais, educadores e profissionais de saúde colaborem em conjunto para fomentar um uso consciente e saudável da tecnologia entre as novas gerações. Com esforços unidos, é viável assegurar um futuro mais equilibrado e saudável para nossas crianças e adolescentes.
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