Desde a Antiguidade, filósofos, psicólogos e artistas têm se debruçado sobre os mistérios que se desenrolam enquanto dormimos, buscando compreender o que significa sonhar e o impacto que podem gerar. A obra “Sandman”, do britânico Neil Gaiman, é um exemplo desse fascínio, que transcendeu a literatura e os quadrinhos para ganhar as telas em uma série repleta de efeitos especiais e narrativas entrelaçadas. Tendo Morpheus, o Rei dos Sonhos, como protagonista, a série despertou entre muitos espectadores uma curiosidade ainda maior sobre o reino onírico e os possíveis significados dessas manifestações que desafiam regras de tempo e espaço, bem como as percepções dos sonhadores.
Por trás da magia e dos enredos de ficção, existe um campo de estudos que investiga não apenas os conteúdos dos sonhos, mas também sua influência na saúde mental e na criatividade. Do ponto de vista da neurologia, os sonhos são definidos como experiências mentais que ocorrem durante o sono, principalmente durante a fase REM (Rapid Eye Movement). “Eles se caracterizam por uma sequência de imagens, sons, emoções e sensações que podem ser vívidas e complexas, ou vagas e fragmentadas. E desempenham um papel importante na consolidação da memória, no processamento emocional e na regulação do humor”, explica o neurologista Willian Rezende do Carmo, especialista em sono.
Funcionamento do cérebro
Para entender melhor os desdobramentos do ato de sonhar para a saúde, pode-se começar pelas diferenças observadas no funcionamento do cérebro enquanto o indivíduo está desperto ou adormecido.
Quando o organismo está acordado, no modo consciente, há predomínio de ondas cerebrais rápidas (beta e gama), associadas ao estado de atenção, raciocínio lógico e processamento de informações externas. Também há maior liberação de noradrenalina, serotonina e dopamina, que promovem o estado de vigília, a motivação e o humor. Bem como maior integração entre diferentes áreas cerebrais, incluindo o Sistema Ativador Reticular Ascendente (SARA), responsável pela ativação cortical, que permite o processamento complexo de informações, atenção e planejamento. Tudo isso compõe a sensação de estar presente no momento, com percepção consciente do ambiente e controle voluntário sobre os pensamentos e ações.
Já no modo inconsciente, a atividade cerebral varia conforme os estágios do sono, com predomínio de ondas cerebrais lentas (delta) no sono profundo e ondas rápidas (theta e alfa) nos estágios mais leves e no sono REM. Nesse período, há diminuição dos neurotransmissores estimulantes e aumento da liberação de melatonina, que promove o sono e o relaxamento. Também há redução da comunicação entre diferentes áreas cerebrais e inibição do SARA. Se por um lado há perda da consciência do ambiente externo, por outro há maior atividade nas regiões do cérebro relacionadas à memória, emoção e processamento interno.
De acordo com o neurologista, os sonhos podem ocorrer em todas as fases do sono, embora eles sejam mais frequentes, vívidos e complexos durante o sono REM. “Isso se deve à maior atividade cerebral e à ativação de áreas cerebrais relacionadas à emoção e à memória durante essa fase”, esclarece.
FASES DO SONO
- Estágio N1: É a fase de transição entre a vigília e o sono. É um estado de sonolência e relaxamento leve.
- Estágio N2: O sono se aprofunda, a atividade cerebral diminui e a pessoa percebe muito menos estímulos do ambiente.
- Estágio N3: É o sono profundo, também conhecido como sono de ondas lentas. Nessa fase, a atividade cerebral é muito lenta, a respiração e o batimento cardíaco ficam mais regulares, e o corpo recupera-se fisicamente.
- Estágio REM: É a fase em que os sonhos mais vívidos e memoráveis ocorrem. A atividade cerebral aumenta e fica próxima do estado de vigília, os olhos movem-se rapidamente sob as pálpebras e os músculos de todo o corpo ficam paralisados, exceto os responsáveis pela respiração e pelos movimentos oculares.
Linguagem do inconsciente
O inconsciente possui sua própria linguagem, que se expressa por meio de símbolos, metáforas e imagens oníricas. “Essa linguagem é diferente da linguagem verbal e racional utilizada no modo consciente, sendo mais intuitiva, emocional e associativa”, destaca Willian.
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Quanto ao conteúdo e a função, há diferentes abordagens para trabalhar o tema dos sonhos. Algumas teorias sugerem que os sonhos ajudam na integração de novas informações com memórias existentes, no processamento de eventos emocionais do cotidiano ou que servem como válvula de escape emocional. “Às vezes, os sonhos podem simplesmente refletir sensações físicas, como quando está com bexiga muito cheia e sonha com água, com inundação. Ou quando o quarto está frio e sonha com lugares frios e assim por diante”, elucida o neurologista.
Do ponto de vista da psicologia, há duas vertentes historicamente reconhecidas pelas contribuições ao estudo dessa temática. A primeira delas está ligada ao austríaco Sigmund Freud, que acreditava que os sonhos são uma linguagem disfarçada sobre os desejos reprimidos. O suíço Carl Gustav Jung, por sua vez, via os sonhos como uma forma de compensação para manter o equilíbrio da mente, ampliando a função dos sonhos como uma maneira de expressão do inconsciente.
“Na interpretação freudiana, os sonhos são percebidos como uma expressão daquilo que ocorreu no estado de vigília, assim a sua interpretação está voltada para o objeto. Para Jung, além de se levar em conta os acontecimentos, leva-se em conta principalmente a interpretação voltada para o sujeito”, esclarece a psicóloga Sonia Regina Lunardon Vaz. Em suma, prestar atenção nos sonhos é um convite para olhar para dentro. Um exercício de autoconhecimento.
A psicóloga Sonia, que atua como analista junguiana, comenta que geralmente as pessoas não são orientadas a dar crédito à linguagem simbólica dos sonhos. Tampouco às suas implicações para a saúde mental e emocional. Isso tem a ver com a visão ocidental, que tende a estar mais voltada para fora, para a busca de realizações e concretizações de metas.
Para quem está interessado em compreender melhor seus sonhos, Sonia recomenda possuir um caderno de sonhos, para anotá-los. “Registrá-los equivale a dar importância ao que está nos comunicando, assim irá nos comunicar mais”, afirma. E, para se aprofundar, uma dica é se familiarizar com a linguagem simbólica por meio do estudo de mitologias e contos de fada.
Papel preventivo dos sonhos
Sonia Vaz chama a atenção para outra função, não menos relevante, dos sonhos. Que é a de aproximar instintos e razão, trazer consciência à linguagem primária do inconsciente. “Lembrar dos sonhos, falar deles no café da manhã, reunir os sonhos num arquivo em seu computador, é uma prevenção contra a neurose”, destaca. Isso porque quanto mais os instintos estiverem separados da razão e vice-versa, mais comprometido com a neurose o indivíduo está.
Segundo a psicóloga, a análise dos sonhos funciona como “um treinamento para enfrentar situações difíceis, inclusive sugerindo ao sonhador caminhos que ele em vigília não percebeu. Contudo seu sistema sensorial percebeu e a forma de comunicar à razão é por meio dos sonhos”.
Para a analista, o fato de não se lembrar dos sonhos também é um chamado para investir mais no autocuidado. “Se a pessoa estiver estressada, seja por uma boa causa ou por uma péssima causa, dificilmente vai se lembrar dos sonhos. Isso ocorre porque o organismo vai censurar os sonhos para não onerar ainda mais o sujeito”, explica Sonia.
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Sonhar e ter pesadelos, o que significa?
O pesadelo é um tipo específico de sonho, que também ocorre durante o sono REM. Porém, é caracterizado por conteúdos angustiantes, perturbadores e amedrontadores. O neurologista Willian Rezende do Carmo explica que quando acontece um pesadelo, há uma participação muito importante da amígdala, uma região do cérebro responsável pelo processamento emocional, especialmente do medo e da ansiedade”. Em vez de o sonho ser guiado por coisas do dia a dia, são os medos, ansiedades, estresse, depressão, transtornos de estresse pós-traumático que guiam os sonhos de pesadelos”, descreve o especialista.
Além de situações estressantes e de privação de sono, o médico informa que os pesadelos também podem ser causados por alguns medicamentos betabloqueadores (como o propranolol), pelo consumo de álcool e outras drogas, e até doenças neurológicas (como Parkinson e narcolepsia). Se esse tipo de sonho aparecer com frequência, é importante que o indivíduo dedique atenção à higiene do sono e busque auxílio profissional para identificar possíveis causas.