Ergotismo: a doença das alucinações, da queimação e da perda dos membros

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(Foto: Reprodução)

Uma mancha escura, que se espalhava rapidamente pelo corpo e ardia de forma insuportável. Esse era um dos sintomas do chamado “mal dos ardentes”, que também ficou conhecido como “fogo sagrado”. Na literatura médica, ganhou o nome de ergotismo e foi definido como uma intoxicação causada pelo consumo de produtos contaminados com o esporão de centeio – um fungo parasita de cereais, mas principalmente de centeio, chamado Claviceps purpurea – ou pelo uso excessivo ou inadequado de drogas derivadas da ergolina.

“A ingestão do centeio contaminado foi uma praga durante toda a Idade Média. Povoados inteiros enlouqueceram. Chamava-se isso de o ‘mal dos ardentes’, pois as pessoas pareciam ser queimadas por um fogo interior, que as deixava estendidas nas ruas urrando de dores”, consta no livro “30 histórias insólitas que fizeram a medicina”, do médico e professor Jean-Noël Fabini.

O consumo do esporão de centeio causa a contração de pequenas artérias do cérebro, das extremidades dos membros e das que irrigam o intestino, impedindo a circulação sanguínea. Com isso, “os pés e as mãos ficam frios, e os tecidos não vascularizados podem levar até a gangrena, o que provoca dores medonhas. No ventre, há uma sensação de queimadura intensa, como se fosse consumido por um braseiro interno. No cérebro, ocorrem alucinações mais ou menos intensas, sempre negativas ou assustadoras, fundamentadas, é claro, pela vivência do doente”, conta o médico.

As epidemias de ergotismo

As referências ao ergotismo são bastante antigas: datam de 600 a.C em inscrições assírias. Já a primeira epidemia foi registrada em 857 d.C na Alemanha. A partir de então, entre os séculos IX e XIV, 80 surtos epidêmicos ocorreram por toda a Europa, com milhares de pessoas mortas ou mutiladas principalmente por comerem pão contaminado.

“No ano de 945, 20 mil pessoas morreram na região da Aquitânia, sul da França, e pouco tempo depois, no ano de 994, outras 40 mil morreram na mesma região. Foi a maior epidemia da memória do fogo sagrado, que aparecia na primavera e no outono, reaparecendo com mais intensidade em época de fome e miséria”, afirma o médico Francisco Lozano Sánchez no artigo “Epidemias por Ergotismo ou Fogo de Santo Antônio – História, Ciência e Arte”, publicado na revista da Universidade de Salamanca.

Os pobres foram os mais afetados pelo ergotismo, pois o pão de centeio era muito mais acessível do que o de trigo. Havia até a denominação de “pão de pobre”, que era o preto, feito com farinha de centeio, e o “pão de rico”, que era branco, feito com farinha de trigo.

O desconhecimento das causas do ergotismo e o forte contexto religioso fizeram com que a doença fosse vista como castigo divino e, por isso, as tentativas de tratamento consistiam em orações, amuletos e infusão de ervas. Nos casos mais graves, para receber os cuidados, muitos doentes peregrinavam aos hospitais da Ordem de Santo Antônio, locais em que mesmo sem conhecer as causas da doença, a alimentação ajudava.

“Nos hospitais antonianos, os doentes não eram alimentados com pão de centeio contaminado, mas com pão de trigo branco. Ao parar de consumir pão contaminado, muitos doentes foram curados”, afirma Sánchez.

Foi assim que o então “mal dos ardentes” e “fogo sagrado” ganhou também o nome de “fogo de Santo Antônio”.

Tudo por causa da farinha

Em 1596, o médico alemão Wendelin Thelius relacionou o ergotismo ao consumo de grãos. E em 1670 o médico francês Thuiller descobriu que a doença estava ligada especificamente ao esporão de centeio – que em francês é chamado de “ergot”. Apesar da descoberta, a doença continuou vitimando milhares de pessoas, já que o pão de centeio continuava sendo uma fonte de alimento para os mais pobres. Além disso, não havia nenhuma regulamentação para a produção de farinha, o que logo viria a mudar em alguns países.

“Em 1778 após a morte de 8 mil pessoas em Sologne, o abade Henry Alexandre Tessier implementou na França políticas de saúde pública que estimularam a separação do fungo do centeio, o consumo generalizado de pão branco de trigo e a substituição do centeio pela batata americana”, afirma o médico Juan David Ramírez-Quintero, no artigo “Sobre o mal dos ardentes ou fogo de Santo Antônio”, da Universidade de Antioquia.

A incidência de ergotismo começou a diminuir no século XIX. Mas nos dois séculos seguintes ainda houve surtos em áreas mais pobres. O último foi na Etiópia, em 1977, afetando 140 pessoas. No Brasil, em 1999, houve um surto em bovinos, sem contaminar nenhum ser humano.

Tipos de ergotismo

O ergotismo é hoje classificado de duas formas: convulsivo (agudo) e gangrenoso (crônico), variando conforme as diferentes espécies do fungo Claviceps. Segundo Sanchéz, as duas formas da doença podiam ocorrer simultaneamente, mas era raro.

“A variante convulsiva é caracterizada pelo desenvolvimento de delírios, alucinações e espasmos musculares (sintomas epileptiformes e convulsões nervosas). Na forma gangrenosa, os sintomas iniciavam-se com um frio intenso e súbito nas quatro extremidades que se transformava em queimação ou picada intensa (era o fogo sagrado ou ignis sacer). As vítimas que sobreviviam eram geralmente mutiladas, incluindo todas as suas extremidades. A mortalidade atingiu 10-20% dos acometidos”, afirma Sanchéz.

Caso mais recente de ergotismo

Em 2020, na Índia, uma jovem de 24 anos foi diagnosticada com o fogo de Santo Antônio. Aos médicos, ela se queixou de uma queimação que ia dos dedos dos pés até as coxas. Um exame de imagem mostrou estreitamento das artérias das duas pernas, o que era compatível com o ergotismo.

No caso dela, a suspeita é que a combinação de dois medicamentos, o ritonavir – para tratar HIV – e a ergotamina – para enxaqueca – tenha provocado o quadro de vasoconstrição. Para normalizar o fluxo sanguíneo, a paciente foi tratada com prostaglandina intravenosa e heparina não fracionada. Ainda assim, teve que amputar um dos dedos do pé.

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