Ações judiciais sobre erro médico: a culpa é de quem?
O relatório “Justiça em Números” do Conselho Nacional de Justiça apresenta uma estimativa, para o período de 2016 a 2018 em todo o Brasil, de ajuizamento de aproximadamente 40 novas ações judiciais por dia, em média, baseadas em alegações de erro médico. Dados que refletem a alarmante “judicialização da saúde”.
No tratamento da saúde – diferentemente dos procedimentos médicos de cunho estético (embelezador), cujas peculiaridades não são tratadas neste texto – a obrigação do médico perante o paciente é de meio e não de resultado. Cabe ao médico: a) agir de acordo com as regras e os métodos da profissão; b) empregar todo seu conhecimento técnico da melhor forma possível, sem assumir o comprometimento de cura; c) prestar um serviço ao qual dedicará cuidado, diligência e atenção, exigidos pelas circunstâncias, de acordo com os recursos de que dispõe e com o desenvolvimento da ciência, sem garantir a obtenção de resultado. O médico só pode ser responsabilizado por danos suportados pelo paciente mediante caracterização da culpa (negligência, imprudência e imperícia).
Diante dessas considerações, cabe indagar se os dados do referido relatório espelham eventual precarização dos serviços médicos. Presunção a que desatentamente se poderia chegar a partir de notícias sobre falhas grosseiras em atendimentos (como esquecimento de material cirúrgico dentro do abdômen do paciente; cirurgia realizada em órgão ou membro errado). No entanto, por mais emblemáticos e horrorizantes que sejam alguns episódios, não deixam de ser pontuais, excepcionais, que dificilmente ensejariam um volume tão expressivo de novas demandas.
Por outro lado, a estatística sofre influência de outras tantas ações judiciais nitidamente temerárias, infundadas e inconsequentes, que merecem reflexão.
Note-se, por exemplo, casos envolvendo pacientes do Sistema Único de Saúde. A lei assegura-lhes o direito de pleitear a responsabilização direta e objetiva do Poder Público independentemente da configuração de culpa do médico (art. 37, §6º, da Constituição; art. 932, III, do Código Civil), assim como garante ao agente público (no caso, o médico) o direito de não responder pessoalmente pelos atos praticados na função pública (princípio da dupla garantia). No entanto, mesmo assim são incontáveis as demandas judiciais aforadas diretamente contra a pessoa do médico, que assim revelam pura intenção de perseguição pessoal, vendeta.
Ainda a título ilustrativo, convém mencionar caso recentemente julgado em que um paciente, alegando ter sofrido queimadura (no antebraço) por culpa de uma profissional de enfermagem enquanto era submetido a uma cirurgia (na coluna), pleiteou indenização tanto do hospital como do médico-cirurgião. Embora não se tenha discutido nenhuma conduta específica e pessoal do médico, mesmo assim ele teve de arduamente responder a ação por mais de cinco anos até que o Judiciário enfim reconhecesse que não cabia a ele (médico) responder por ato da profissional de enfermagem, já que “é de rigor a demonstração da culpa ou dolo do profissional de saúde, sob pena deste responder objetivamente por dano causado, o que implicaria no desvirtuamento do sistema legal da responsabilidade civil”.
Os ônus dessas iniciativas não são suportados pelo demandante, quando beneficiário da assistência judiciária gratuita. Mas são suportados pelo Estado (diante da sobrecarga da máquina judiciária cujas despesas são expressivas e que impacta negativamente na eficiência da atividade jurisdicional) e, paralelamente, pelos médicos, que, além de se verem compelidos a arcar com custos extraordinários (despesas processuais, honorários de advogado, perícia judicial etc.), veem afetadas a paz e a tranquilidade durante todo o longo trâmite processual, por mais infundada que seja a ação. Trata-se de grave desequilíbrio que há de ser combatido, sobretudo mediante consciente atuação dos operadores do direito.
No atual ambiente de litigiosidade exacerbada em que se busca uma mudança de cultura com vista a reduzir a intervenção do Poder Judiciário (veja-se o louvável movimento de incentivo a métodos alternativos de resolução de conflitos, como negociação, mediação, conciliação, arbitragem), o advogado, que “é indispensável à administração da justiça” (art. 133 da Constituição), exerce papel fundamental no estudo e na aceitação da causa. Principalmente porque há medidas judiciais próprias para previamente (e cuidadosamente) se apurar e colher informações sobre eventual negligência, imprudência ou imperícia médica e, bem assim, sobre a viabilidade da demanda (como a produção antecipada de prova, admitida nos casos em que “o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento de ação” – art. 381 do CPC). A nobreza da defesa dos direitos de pacientes não se harmoniza com o abuso de direito e o desmedido aforamento de ações judiciais infundadas, irrefletidas e aventureiras, que, além de assoberbarem o Poder Judiciário, colocam em risco a própria viabilidade de um sistema de saúde já notoriamente fragilizado, notadamente por causarem insegurança jurídica à comunidade médica que, nesse cenário, vê-se vulnerável e desencorajada a exercer seu distinto e grandioso ofício.
Ricardo Key Sakaguti Watanabe
Advogado
Pós-graduado em Direito Administrativo
Membro da Comissão de Gestão Pública e Controle da Administração da OAB/PR Sócio do escritório Watanabe e Scopel Advogados Associados