O alcoolismo atinge mais de 12% da população brasileira e apresentou agravamento durante a pandemia
Nascido em São Paulo, filho de alagoanos, formado em jornalismo. Roberto José da Silva, 68 anos, ficou animado quando recebeu o convite para contar sua história aqui na Ampla. Ele lembra que começou a beber aos 19 anos. Na sua família, seu pai e seu único irmão eram alcoólatras. O pai parou de beber quando parou de andar. O irmão ficou sóbrio por 30 anos, antes de morrer aos 61 anos por câncer.
“Comecei a ter problemas com álcool entre 25 e 30 anos, já em Curitiba. Nunca matei ninguém no trânsito. Quase morri ao destruir meu carro num poste. Fui parar no pronto-socorro do Hospital Evangélico depois de beber em vários bares. Saí de madrugada com o rosto todo costurado. Xinguei os médicos e, à noite, estava bebendo de novo”, lembra.
Silva parou de beber em 1990 quando teve uma crise de pânico por não conseguir fazer uma reportagem de capa para uma edição da revista Veja Curitiba. Seu “calo” emocional se materializava no trabalho. “Parei de beber depois de um internamento que, hoje sei, era enganação. Uma semana dentro de uma ala de hospital, mais nada. Na época, já fazia terapia com psicóloga. Era o início de um caminho para a grande descoberta, ou seja, de mim mesmo, de me olhar. Depois, substituí o álcool por outra droga, a cocaína. Nisso aprendi que a dependência não é de uma substância. É de todas, por isso digo que sou dependente, principalmente, das drogas que não conheço”, conta.
A história de Roberto José da Silva é uma entre as mais de 4 milhões que temos no Brasil, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Além do álcool, ele usou cocaína e foi internado duas vezes. Um deles na Clínica Quinta do Sol, em 1994, local onde é voluntário até hoje.
“O voluntário é um dependente que está dando certo. Faço meus plantões de duas horas uma vez por semana, além de participar de uma conversa com os pacientes aos sábados. Nunca parei de frequentar a Clínica, de fazer terapia e de falar a respeito. É o meu tratamento, que envolve também remédios para estabilizar humor e antidepressivos”.
Alcoolismo e pandemia
Dados da pesquisa “Álcool e a Saúde dos Brasileiros – Panorama 2022”, realizada pelo Centro de Informações sobre Saúde e Álcool (CISA) apontam ainda, que em 2020 o país teve o maior número de mortes atribuíveis à substância desde 2010. Também houve um crescimento de 24% nos óbitos por ingestão de substância alcoólica no primeiro ano da pandemia em comparação com 2019.
Conforme explica o psicólogo e conselheiro do Conselho Regional de Psicologia (CRP), Fábio José Orsini Lopes, o cenário das pessoas que fazem uso e abuso de álcool e outras drogas no Brasil é preocupante.
“A pandemia trouxe agravamento nas condições de saúde mental das pessoas como um todo. Estou falando da precarização do trabalho, das desregulamentações dos direitos do trabalho, e a sobrevivência das pessoas que se tornou muito difícil. Isso é um adoecimento social e impacta na saúde mental das pessoas”, analisa.
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Lopes ainda comenta que as causas e riscos do abuso de álcool e outras drogas são multifatoriais e biopsicossociais. Um conjunto de coisas, não apenas herança genética, mas condições de vida, sociais, econômicas ou emocionais, e algo que atravessa todas as classes e categorias de pessoas.
“Isso também tem a ver com a sociedade contemporânea de consumo, tipos de angústias sociais que temos atualmente”, ressalta.
O psicólogo da Clínica Quinta do Sol, Lucas Tadra Beckert, vai um pouco além e entende que o alcoolismo é uma doença biopsicossocioespiritual, ou seja, tem impacto e raízes em todas as áreas da vida humana. Segundo ele, por ser o alcoolismo uma enfermidade progressiva, é possível notar comportamentos de risco a si e aos outros, principalmente, em acidentes de trânsito, no rebaixamento da crítica e contenção de impulsos.
“Em estados agudos observa-se presença de ideias e comportamentos suicidas, condição de humor deprimido e transtorno de ansiedade. Sintomas e comportamentos que, quando não tratados, retroalimentam o ato de beber. É importante destacar que o beber patológico é regido pela compulsão, quando o sujeito não consegue estabelecer um limite na ingestão de álcool”, avalia.
Modelo de atenção psicossocial
O médico psiquiatra e especialista em adição psíquica, Diogo Bornancin, reforça que os pacientes portadores de transtorno por uso de álcool apresentam um conjunto de sinais e sintomas que resultam em sofrimento e prejuízo em diversas áreas da vida.
Segundo ele, comportamentos que os portadores desse transtorno podem ter estão associados tanto ao efeito agudo do álcool, como desinibição do comportamento, agressividade, irritabilidade, sonolência, como aos efeitos logo após o consumo – sintomas depressivos, ideação suicida, disforia, aumento de ansiedade e os efeitos crônicos resultantes do uso, como sintomas depressivos e ansiosos.
Conforme Bornancin explica, os sintomas do alcoolismo vão muito além da intoxicação por álcool. Em geral, pessoas que já se tornaram dependentes tendem a beber sozinhos e fora de conjunturas sociais; demonstram agressividade quando confrontados; têm problemas em parar de beber mesmo estando embriagados; apresentam sinais inquietantes, como prejuízo na memória, tremores, insônia e ausência de apetite.
Quem busca ajuda
A busca por atendimento pode ocorrer voluntariamente pelo paciente ou pelas famílias. Em função dos efeitos do álcool, muitos usuários não percebem os prejuízos do consumo. Segundo Bornancin, existem casos em que os pacientes não desejam e não aceitam tratamento. De acordo com ele, nessas situações, inicia-se com terapia de família, que tem um papel fundamental para a modificação do comportamento do dependente. “Existem condições nas quais é necessário realizar um internamento involuntário, quando o paciente apresenta algum risco para si mesmo ou para a sociedade”, relata Bornancin.
Na Clínica Quinta do Sol, em Curitiba, é mais comum que o primeiro contato seja feito por familiares ou pessoas próximas.
“Existem fatores que contribuem para que a busca não seja realizada, num primeiro momento, pela pessoa que precisa de ajuda, mas sim por alguém próximo”, conta o psicólogo Lucas Beckert.
Segundo ele, atualmente, acredita-se que o desenvolvimento do transtorno por uso de álcool está associado a questões genéticas e ambientais. As pessoas podem geneticamente estar mais predispostas a desenvolverem uma dependência química, tendem a ter mais prazer ao consumir as substâncias, um uso mais compulsivo e maior dificuldade de controle no uso.
Soma-se isso a um ambiente que pode predispor os indivíduos a um consumo mais frequente e mais precoce das substâncias. O ambiente pode causar alterações nos genes por meio de mecanismos epigenéticos e que, além disso, uma maior exposição às drogas pode causar condicionamentos psicológicos ao consumo.
Referência de atendimento
A Clínica Quinta do Sol trata das questões de abuso e dependência de substâncias desde 1984, em particular dos problemas relacionados ao álcool, que era a droga de maior predominância na década de 1980.
Posteriormente, na década de 1990 e início dos anos 2000, foram aparecendo demandas por tratamento de substâncias de outra ordem. Segundo o psicólogo da Clínica, por se tratar de uma doença complexa, tanto em sua compreensão, quanto no seu manejo, são os fatores emocionais e psíquicos que precisam ser trabalhados e desenvolvidos quando se busca uma mudança expressiva.
“Quando falamos em tratamento do alcoolismo, olhamos para um processo de desenvolvimento pessoal e emocional, considerando que somente a abstinência não basta, é possível construir um processo de mudança na forma de se viver, por meio da conscientização e novas aprendizagens”, analisa.
Para isso, os pacientes participam de psicoterapia de grupo diariamente, atendimento e contato psicológico individual e familiar, somado a toda uma programação de atividades focadas na temática da recuperação.
“Os familiares dos nossos pacientes passam por reuniões em grupo e são orientados pelos terapeutas da Clínica. A internação integral é uma parte do processo, a Quinta do Sol possibilita e oferece um programa de tratamento durante essa modalidade e no pós-alta”, relata.
A Instituição atende por convênios ou particular a todas as pessoas acima de 18 anos que fazem abuso de substâncias, lícitas ou ilícitas, dependências não químicas e outros transtornos emocionais. É uma clínica mista, que acolhe homens e mulheres, inclusive de outros estados e países.
Acolhimento social
Localizada em Curitiba, a Cristolândia realiza um trabalho de acolhimento social voltado para pessoas alcoólicas, sem medicação psiquiátrica. O trabalho é feito com o objetivo de trabalhar a espiritualidade do indivíduo. A abstinência também é abordada, e se houver a necessidade de medicação, a equipe leva o acolhido até ao hospital mais próximo.
A equipe técnica é composta por dois psicólogos, uma assistente social, duas enfermeiras voluntárias e um médico clínico geral voluntário.
“O primeiro passo para socorrer um alcoólatra é se informar sobre o alcoolismo, sobre prováveis motivações do indivíduo beber, sobre os agravos que essa doença causa, quais são os tipos de tratamentos, quais os efeitos naturais de não se tratar”, diz o pastor Alexandre Ferri.
Na Cristolândia dá-se preferência para pessoas em estado de rua, em vulnerabilidade social, indivíduos que são alcoólatras têm vários problemas em se conservar sóbrios e evitar o procedimento de recaída na substância durante o andamento de desintoxicação e terapia.
Recaídas
Diante desse cenário, pessoas que tendem a ter um comportamento compulsivo e obsessivo no álcool padecem em excesso devido à legalidade da substância. Mesmo convivendo com todas as estruturas que os grupos de apoio têm, o índice de recuperação de dependentes no alcoolismo varia entre 1 e 2%, o que mostra a dificuldade dos centros de acolhimentos.
É uma doença que passa por recidivas e consideramos que o reaparecimento do sintoma (ato de beber) faz parte do processo de muitos pacientes, incluindo a necessidade de novos internamentos.
“A abstinência pode ser um marcador de eficácia do tratamento, porém, é o conjunto de fatores de proteção como família e um ambiente laboral preparado para lidar com essas questões, bem como, um serviço de saúde que ofereça um suporte contínuo, são determinantes para o controle da doença”, analisa o psicólogo da Quinta do Sol, Lucas Beckert.
Ele explica que a abstinência total é um objetivo terapêutico importante, porém, a experiência e a bibliografia existentes mostram que os problemas relacionados ao álcool passam, na grande parcela dos casos, pelo processo de recaídas.
“O ato de beber é um sintoma de um processo maior, pois compreendemos que para além da interrupção do uso são necessárias mudanças estruturais no estilo de vida”, avalia Beckert.
Tratamento multiprofissional
Conforme o psiquiatra Diogo Bornancin, o tratamento sempre deve ser multiprofissional. O paciente deve ser atendido por um psiquiatra para diagnóstico dos transtornos mentais, comorbidades, manejo farmacológico dos gatilhos para o uso e fissura. Um psicoterapeuta para realizar terapia individual. E também é indicado que o dependente participe de um grupo para tratamento de dependência química, como os Alcoólicos Anônimos (AA) ou um grupo terapêutico específico e que faça outros tratamentos, se necessário, como nutricionista, terapeuta ocupacional, assistente social, dentista, etc. É fundamental que a família também tenha um suporte.
“Nesse sentido, costumamos encaminhar as famílias para tratamento em psicoterapia. Nas situações em que há falência do tratamento ambulatorial, risco de suicídio, exposição moral, autoagressão ou heteroagressão é indicado o tratamento em regime integral (voluntário ou involuntário)”, orienta o médico.
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