Público ou particular,
no sistema de saúde brasileiro todos pagam a conta
Impostos e mensalidades viabilizam tratamentos de saúde, por isso excessos e abusos de alguns prejudicam todos os usuários do SUS ou de planos privados
“Vou usar mesmo! Estou pagando”. Essa lógica pode funcionar em muitas situações, mas certamente não se aplica ao sistema de saúde brasileiro, seja na saúde suplementar ou mesmo no Sistema Único de Saúde (SUS). Isso porque quando um paciente faz um exame sem necessidade, por exemplo, todos os beneficiários, no caso dos planos de saúde, ou todos os cidadãos, no caso da saúde pública, estão dividindo a conta.
O plano de saúde tem base coletiva, ou seja, seus usuários são ligados pelo mutualismo. A pessoa adere ao plano e paga uma mensalidade para a operadora, que constitui um fundo. Todos os recursos financeiros daquele grupo de pessoas são reunidos e, se for necessário, são usados para pagar despesas médicas e hospitalares. Alguns poderão nunca utilizar o sistema, enquanto outros poderão precisar de tratamentos de alto custo.
Segundo a Agência Nacional de Saúde (ANS), hoje o país tem quase 48 milhões de beneficiários de planos de saúde, isso significa que 1 em cada 4 brasileiros faz parte da saúde suplementar, sendo que 778 operadoras estão em atividade.
No SUS não é muito diferente, já que todos os brasileiros financiam o sistema de saúde por meio do pagamento de impostos, por isso o uso abusivo dos recursos oferecidos à população prejudica toda a sociedade. O sistema atende 150 milhões de pessoas, cerca de 80% da população brasileira. Um exame que não faz a menor diferença na vida de uma pessoa pode influenciar no custeio do tratamento de outra.
Cenário
Atualmente o sistema de saúde enfrenta um sério dilema, pois gasta mais do que arrecada. Até mesmo as operadoras de saúde não estão conseguindo fechar as contas. O uso exagerado dos serviços médicos, a requisição excessiva de exames, desperdícios e a judicialização estão entre os motivos.
Em 2016, quase 1,4 milhão de processos judiciais de saúde tramitaram nos tribunais brasileiros. As informações são do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e se referem a vários tipos de ações, entre elas pedido de medicamentos e solicitação de procedimentos de alto custo, e são 49% maior se comparado à mesma pesquisa realizada no ano anterior. Só em 2015, os gastos com as demandas judiciais chegaram a R$ 8 bilhões.
“O acesso acaba por ser excludente porque retira recursos de um sistema (e não se sabe exatamente de onde ou de quem) para outorgar um benefício em favor de um ou de poucos. Por vezes, pode ser devido, quando a falha está no prestador do serviço. E, nesse caso, o Poder Judiciário atua de modo corretivo. Todavia, se a providência pretendida estiver fora daquilo que as saúdes pública ou suplementar se propuseram a arcar, esses recursos fatalmente impactarão outros serviços, gerando mais iniquidade”, comenta o desembargador João Pedro Gebran Neto, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região.
Em entrevista ao jornal O Globo, em 28/06/18, a presidente da FenaSaúde, Solange Beatriz Palheiro Mendes, destacou que esse cenário acaba acarretando problemas para todos os envolvidos, já que o individual se sobrepõe ao coletivo, prejudicando outros beneficiários.
Daniel Wang, professor de Direito na Queen Mary, University of London, e especialista em direito à saúde, diz que a expectativa dos usuários do sistema de saúde é muito maior do que a realidade de fato, sendo que nem mesmo nos países mais desenvolvidos tudo é atendido.
O professor explica que a expectativa de vida aumentou; existindo uma demanda dos serviços de saúde por um intervalo maior de tempo, a tecnologia está proporcionando inovações, porém exige alto custo; e o acesso à informação hoje em dia é maior, levando os pacientes a procurarem mais recursos. Tudo isso faz com que os gastos do sistema de saúde só aumentem com o passar dos anos. “Não há sistema que vá conseguir dar tudo para todo mundo. Em geral, na saúde, sempre tem muita coisa para fazer. Acho que todo gestor gostaria de poder pagar melhor seus profissionais, gostaria de contratar mais, melhorar a infraestrutura, mas você tem que fazer escolhas em algum momento”, ressalta.
Equilíbrio
De acordo com ele, para o sistema de saúde se manter equilibrado, é preciso estabelecer regras muito claras sobre o funcionamento do atendimento, sobre como são aplicados os recursos e quais os critérios utilizados ao conceder ou negar tratamentos, assim o usuário sabe quem pode receber o quê, além disso, a transparência evita privilégios e discriminações.
O desembargador do TRF-4 destaca que, para manter o sistema funcionando, é preciso gestões competentes, o estabelecimento de regras de autocontrole de seus agentes, além da atuação ética na aquisição e repasse de insumos. “Limites podem ser necessários, obviamente, desde que atendidos os interesses do sistema e dos pacientes. É sabido que, por vezes, há excessivas solicitações de exames, há dispositivos médicos que podem ser substituídos por outros menos onerosos, há medicamentos de igual eficácia que impactaria em menor medida a conta da operadora de plano de saúde”, pondera.
Wang compartilha da mesma opinião. Segundo ele, no sistema de saúde, são tomadas decisões muito difíceis, porém é preciso encontrar a proporção certa entre o desejo de ajudar e a viabilidade do próprio sistema, alocando os recursos da forma correta para atender o máximo de pessoas, da melhor maneira possível.
Dados da ANS mostram que os médicos de planos de saúde brasileiros estão entre os que mais pedem exames no mundo. Só em 2016, foram realizados quase 800 milhões de exames complementares, segundo a Agência. Excesso que também é condenado pelo professor. “Será que existe a necessidade de tanto exame? Precisa mesmo ir em tanto especialista? Um clínico geral não resolveria o problema? Parece-me que existe um incentivo errado dentro do sistema suplementar. É preciso racionalizar”, questiona.