Radiografia do profissional médico no Brasil
A incorporação de novas tecnologias, a saúde dos profissionais e a formação continuada, além de melhores condições para carreira, estão entre os pontos de reflexão necessários para a evolução médica nacional
O NÚMERO DE MÉDICOS em exercício no país chega, hoje, a 500 mil profissionais, segundo dados do Conselho Federal de Medicina (CFM), sendo que, desses, apenas 130 mil são considerados indivíduos de uma geração que já nasceu conectada às novas tecnologias. A Inteligência Artificial, o teleatendimento, entre outros recursos, já não são mais nenhuma novidade, mas o desafio está em integrar e tornar essas ferramentas caminhos cada vez mais estruturados para melhorar o acesso da população à saúde brasileira e as condições para o exercício profissional.
Segundo o presidente do Conselho Regional de Medicina do Paraná (CRM-PR), Roberto Issamu Yosida, esse novo cenário tecnológico representa impactos diretos, porém, há uma grande capacidade de reflexão e, mesmo os profissionais mais experientes, já incorporaram as inovações na rotina, o que vem mudando é o comportamento do paciente nesse meio de campo. “Uma pesquisa recente perguntou se as pessoas aceitavam ser atendidas por uma máquina. A maioria não se importou, desde que fosse mais barato, rápido e certeiro. Essa geração de profissionais terá que se adaptar a esse paciente”, comenta.
No caso da telemedicina, há em vigor atualmente a Resolução nº 1.643/2002 CFM, no intuito de proteger o exercício da medicina brasileira de forma regulamentada, bem como a população (veja quadro página 19). Em breve, essa resolução deverá ser atualizada. Segundo Yosida, essa proteção ocorre no sentido de que toda empresa que desenvolva telemedicina esteja em território nacional, a fim de que não exista o risco de atendimento estrangeiro sem o conhecimento dos pacientes. “A resolução também estabelece alguns regramentos para utilização, pensando em regiões muito remotas, como a situação da Amazônia, por exemplo, pois é um recurso de bastante utilidade para pessoas que não têm nenhum tipo de acesso. Além do que, no Sistema Único de Saúde (SUS), é uma forma para encaminhar mais rápido os casos que necessitam”.
O ponto de partida para regulamentar a telemedicina é o Protocolo de Israel, adotado pela 51ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial em Tel Aviv (Israel), em outubro de 1999. De acordo com o presidente da Associação Médica do Paraná (AMP), Nerlan de Carvalho, o assunto exige, na questão prática, uma análise do contexto social em que estamos inseridos, pois o efetivo uso e funcionamento depende de um aparato. “É inegável que ela veio para ficar, mas temos que entender, por outro lado, o aspecto de que a estrutura para atender necessita investimento. É um instrumento necessário, mas temos que entender a nossa realidade na condição de país”. Carvalho se refere, principalmente, às condições estruturais de acesso à internet para armazenamento dos dados dentro dos protocolos de segurança para que seja uma rede confiável aos pacientes e aos profissionais.
Embora já faça parte do dia a dia, a incorporação de bases tecnológicas e a modificação do atendimento ainda encontram certa resistência quando envolve a relação médico-paciente. Por entender que essa é a base da Medicina, Yosida acredita que, por isso, possivelmente, essa relação nunca vai ser substituída. “Sem dúvida, ferramentas, como a Inteligência Artificial, assim como a telemedicina, vão ajudar os pacientes e os profissionais, mas teremos que saber usar de maneira sensata para que não exista esse distanciamento que a tecnologia proporciona. Às vezes, um olhar durante a consulta pode vislumbrar aquela necessidade latente que não será possível por outro meio, a não ser no contato pessoal”.
Nessa mesma linha, o diretor de Mercado e Comunicação da Unimed Federação, Alexandre Gustavo Bley, complementa que a tecnologia representa para a medicina agilidade, precisão, mas não responde a todos os desafios em saúde. “A tecnologia sempre se fez presente, a grande questão levantada são os limites éticos de sua utilização. Existe uma preocupação de que ela venha a substituir o humano, mas sabemos que existe uma sutileza intangível em determinados diagnósticos. Por exemplo, a presença da AI, com sua alta capacidade de processamento de dados, pode ser um importante aliado técnico para o médico se dedicar e fazer o mais sublime, que é estabelecer uma relação mais humana com seu paciente e, com isso, fechar um diagnóstico”.
RECONHECIMENTO E REMUNERAÇÃO
Na área da saúde, a realidade nacional vem se transformando de forma conjunta entre a população e os médicos e as médicas, e os desafios ultrapassam a questão dos pacientes que já chegam após a primeira consulta com o “Dr. Google”. No lado profissional, há a necessidade de equilibrar um atendimento adequado mesmo com baixas remunerações. “Devido à massificação de médicos no mercado brasileiro, nós estamos sofrendo uma remuneração cada vez mais exploratória pelas empresas. Ou seja, um pagamento reduzido por consultas. É preciso entender que a medicina não se trata de uma linha de montagem”, destaca o presidente da AMP.
Sobre o diagnóstico precoce por meio dos buscadores, Carvalho considera que não restam muitas alternativas, a não ser o profissional resolver o caso, atender o paciente, esclarecer os pontos de dúvida e ser explicativo. A complexidade e os desafios constantes de novos cenários têm gerado preocupação em todos os tipos de profissões. Entre os médicos, não é diferente. Soma-se a isso a pressão e o acúmulo da carga horária elevada, para alcançar um bom retorno com os baixos pagamentos. Tudo isso, invariavelmente, afeta o grau de ansiedade do indivíduo que por conta do trabalho estressante tem resultado em vários quadros de síndrome de burnout (distúrbio emocional com sintomas de exaustão extrema).
A redução da remuneração vem de um processo histórico e evolutivo recente. E a compreensão para as motivações passam pela observação da evolução na área da saúde no Brasil e na formação acadêmica. Atualmente, o país é o segundo colocado em número de escolas médicas, com total de 341, perdendo apenas para a Índia (392), e passando os Estados Unidos (184). Com isso, há 34 mil novos médicos egressos na carreira todos os anos. “Ninguém pode ser contra uma boa escola de medicina, mas esse número vem descolado de qualidade”, avalia Yosida.
No caso do modelo assistencial, Bley comenta que existe uma mudança de foco em curso e a presença de um atendimento qualificado e resolutivo será cada vez mais perseguido. “O modelo que temos hoje é centrado na doença, com alta frequência de procedimentos e aí sobressai a necessidade de um número maior de profissionais. Essa demanda é desorganizada e gera desperdício. O que se discute globalmente é um modelo baseado na saúde, no qual o indivíduo é empoderado e estimulado a se cuidar e os profissionais terão um papel de relevância no auxílio à manutenção do equilíbrio e do bem-estar das pessoas. Nesse cenário idealizado, a qualidade se sobrepõe à quantidade e podemos ter colegas com dificuldade de se posicionarem no mercado, devido a uma formação deficitária”, explica.
Esse crescimento é um desdobramento de projetos do Governo nos últimos 20 anos. “E se nós lembrarmos em 2018, quando deveria vigorar que todos os egressos estariam condicionados a uma residência médica? Isso seria impossível, porque não existem tutores suficientes para orientar. Não existe estrutura para atender isso. A formação médica implica graduação, pós-graduação e aprimoramento. As sociedades de especialidades buscam pela excelência em sua formação, mas as residências médicas, ofertadas a 38% dos egressos de medicina, estão com certa dificuldade de serem preenchidas. E cerca de 60% dos que entram no mercado não têm complementação do ensino”, pontua Carvalho. Ele enxerga com muita preocupação o impacto negativo que isso pode representar para a população em termos de atendimento.
Para melhorar as condições do exercício desses profissionais no mercado, é preciso repensar a distribuição das vagas em todo país, inclusive nas regiões remotas. Além disso, as oportunidades devem ser atrativas e condizentes com as necessidades de ganho. “As vagas começaram a sobrar e foram mal distribuídas e mal organizadas. Mesmo depois da residência, vê-se que a distribuição das vagas se concentra nas regiões litorâneas e nas grandes cidades, o que também é uma ação equivocada. Para mudar isso, é preciso políticas públicas”, pontua o presidente do CRM-PR.
As entidades de classe já vêm lutando pela proposta de uma carreira médica no Estado para tentar reverter o quadro existente, que do ponto de vista do CRM é o que pode tentar ajudar a resolver a situação. “É preciso dar garantias ao profissional de que, independentemente do local que necessite do seu trabalho, será remunerado de maneira digna e que, no decorrer da vida profissional, poderá galgar outras cidades melhores e possa se aposentar em um grande centro, aos moldes do que ocorre no Judiciário”, explica Yosida.
A mobilização já vem surtindo efeitos, e, no segundo semestre de 2019, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, participou da instalação de uma comissão mista responsável por analisar o programa Médicos pelo Brasil (MP 890/2019), que vai substituir o programa Mais Médicos e, segundo Madetta, vai criar uma carreira médica Federal. Para ingressar no programa, os médicos vão ter que fazer uma prova e comprovar formação específica em clínica médica. Porém, as gratificações vão ser conforme o local de atuação e a experiência adquirida.
Na avaliação de Carvalho, a iniciativa é uma tentativa real de alterar o cenário atual, pois um recente trabalho publicado pela USP fez um levantamento mostrando que nem sempre a abertura de uma faculdade de medicina em cidade distante, do interior, implica que o médico fica naquela região. Nesse sentido, comprova-se ainda mais a ineficiência de abrir novos cursos e universidades de forma irrestrita. “Significa que os profissionais estão concentrados em grandes centros, principalmente nas regiões Sul e Sudeste. Existem áreas desprovidas nas quais a relação médico/habitante é muito discrepante, mas são cidades onde a estrutura não é nem adequada. Aí que entra esse projeto e a ideia de uma carreira médica, mas com condições aos profissionais também”, reforça o presidente da AMP.
Outro ponto que também interfere diretamente na questão da distribuição e remuneração é a escolha das especialidades. Segundo Carvalho, há uma tendência de procura muito maior por alguns segmentos, inclusive propositais ao ganho, o que tem reduzido alguns nichos como, por exemplo, a pediatria. “Hoje o médico ou a médica que seguem esse caminho estão, não diria em extinção, mas em uma procura reduzida. Entre os pontos, está a remuneração. Isso porque viver exclusivamente de consulta é uma situação que nem sempre permite que o pediatra se mantenha. E, com isso, acaba abandonando a especialidade para exercer um cargo de auditor ou de perito. Em contrapartida, em especialidades como dermatologia e oftalmologia a procura é alta”, detalha.
DESAFIOS ÉTICOS
Dentro da rotina profissional, os médicos e médicas são constantemente expostos a questionamentos éticos. E esse fator vem se tornando muito latente com a chegada frequente no território nacional de grandes empresas e investidores, que acabam gerando um conflito de interesse entre as diretrizes e as possibilidades. “A questão da interferência da indústria vem desde a época de formação, especializações, residência, até a efetiva vida profissional. Existem algumas normativas dos conselhos para que sejam mais transparentes. Uma delas, por exemplo, orienta quando o médico for falar de um assunto no qual exista o conflito ou o potencial conflito. “O médico deve declarar o conflito/potencial conflito ao início de sua apresentação”, observa Yosida.
Embora o regramento seja um caminho para balizar várias atividades na medicina e na saúde, de modo geral, não é necessário marcar todas as práticas, a “questão ética é de vontade do indivíduo”, como lembra o presidente do CRM-PR. Ou seja, é de dentro para fora. Então, o caminho a ser seguido, a fim de atender a todos, mas, principalmente, a população, parte de uma convergência de ideias e cuidados entre indústria, organizações, operadoras, indivíduos, empresas e hospitais. Não há como negar que o novo ambiente de trabalho exige diversas competências, sendo assim, faz-se necessária, a busca pelo equilíbrio entre todas as partes envolvidas do processo.
Confira o que prevê a Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1.643/2002 sobre a Telemedicina atualmente
RESOLUÇÃO 1643/02
Define a telemedicina como o exercício da medicina por meio da utilização de metodologias interativas de comunicação audiovisual e de dados, com o objetivo de assistência, educação e pesquisa em saúde.
Estabelece que os serviços de telemedicina deveriam obedecer normas técnicas do CFM pertinentes à guarda, manuseio, transmissão de dados, confidencialidade, privacidade e garantia de sigilo profissional.
Não prevê a teleconsulta
Não prevê o telediagnóstico
Não prevê a telecirurgia
Não prevê a teleconferência de ato cirúrgico
Não prevê a teletriagem
Não prevê o telemonitoramento
Não prevê a teleorientação
Não prevê a teleconsultoria
Em caso de emergência, ou quando solicitado pelo médico responsável, o médico que emitir o laudo à distância poderá prestar o devido suporte diagnóstico e terapêutico
Não prevê autorização do paciente para a transmissão de dados