Imagens de violência nas redes sociais podem agir como agentes traumáticos

Especialistas destacam que pessoas expostas a imagens de violência, mesmo que através de uma tela, podem não estar preparadas psicologicamente

Violência nas redes sociais
O surgimento das redes sociais favoreceu uma nova dinâmica na circulação dessas imagens em função da rapidez da disseminação – Fotomontagem: Jornal da USP – Imagens: Vectonauta/Freepik, natanaelginting/Freepik, Kyivcity.gov.ua / CC 4.0, Vlad Szirka/Flaticon, adriansyah/Flaticon e Gabinete do Presidente da Ucrânia via EBC

A divulgação de imagens de violência de conflitos, como as da invasão da Ucrânia e as da Guerra entre Israel e Hamas, mais recentemente, é algo muito comum em coberturas jornalísticas. Com o advento das redes sociais e, por consequência, a possibilidade de qualquer usuário compartilhar conteúdos, a circulação de registros violentos inadequados atingiu níveis e padrões ainda mais desregulados.

A falta de regulamentação no compartilhamento dessas imagens, especialmente nas redes sociais, anda lado a lado à intensificação de seus impactos negativos. De acordo com Daniela Osvald Ramos, professora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), aspectos como a própria dinâmica de funcionamento das mídias e a cultura de consumo e reprodução de imagens de violência compõem esse fenômeno.

Luciano Bregalanti Gomes, pesquisador do Instituto de Psicologia da USP, explica que essas imagens podem agir como agentes traumáticos, na medida em que as pessoas que são expostas às violências, mesmo que através de uma tela, podem não estar preparadas psicologicamente. “Modos de funcionamento que buscam o equilíbrio mental que normalmente passa pela repetição das cenas, paradoxalmente, as cenas causadoras de sofrimento, podem ser, involuntariamente, repetidas como uma tentativa de melhor compreensão daquilo para o que se encontrava despreparado no momento da exposição”, elabora Gomes.

Ausência de regulamentação 

A disseminação desses registros nos grandes meios se iniciou, segundo a professora Daniela, em 2003, com a violenta captura de Saddam Hussein, que foi extremamente noticiada e, em 2006, com sua execução, já extremamente compartilhada nas redes sociais. A especialista esclarece que, na área de comunicação, especialmente jornalística, a discussão acerca do uso de imagens de extrema violência ou vulnerabilidade social perpassa diretrizes específicas de cada jornal.

A partir de uma falta de padronização já na grande mídia sobre o tema, o controle desses conteúdos nas redes sociais se torna ainda mais complexo. Ela ainda complementa que esse uso – por parte da mídia sensacionalista, que visa a venda de publicações – condiz com o tipo de conteúdo que a sociedade foi educada a consumir em filmes, televisão e, mais recentemente, intensificado nas redes sociais.

Dinâmica da circulação da violência nas redes sociais

Daniela Osvald Ramos – Foto: Lattes

Daniela explica que o funcionamento das plataformas e seus assuntos se baseia em uma arquitetura algorítmica com um feedback circular. “O conteúdo entra, é consumido pelas pessoas e ranqueado. Ele tende a voltar a se disseminar em uma lógica circular: quanto mais pessoas curtem, mais ele aparece, ele nunca sai de circulação”, analisa.

Outra característica determinante para entender o fenômeno está ligada ao processo autorreferencial do algoritmo, isto é, quando o computador precisa resolver algum problema, ele recorre ao próprio computador. Assim, segundo a professora, as imagens de violência na mídia tendem a se reforçar e gerar uma espiral de consumo de violência que se volta a si mesma.

Além disso, sem a avaliação crítica acerca desses conteúdos de ficção e realidade e seu consumo em excesso, o fenômeno dessa disseminação pode levar a uma banalização da violência. Dessa maneira, a sociedade pode passar, de certa forma, a digerir, legitimar e  reproduzir a existência de certas violências contra a mulher e o negro, por exemplo.

Impactos psicológicos

Com a repetição das cenas traumáticas, na tentativa de se obter um maior entendimento, o pesquisador comenta que o psicológico enfrenta uma série de desconfortos e sofrimentos no indivíduo exposto. Durante esses processos, é exigido um trabalho muito árduo do aparelho psíquico que pode gerar, em quadros mais graves, casos de ansiedade, depressão, insônia, pesadelos e falta de concentração. Outros efeitos que são possíveis, a partir da intensa exposição a essas imagens, abrangem uma ordem comportamental, como o aumento de demonstrações agressivas.

“Também é importante mencionar o que se chama de ‘dessensibilização à violência’, ou seja, uma diminuição gradual da capacidade de sentir, de se implicar com o sofrimento oriundo de acontecimentos e ambientes violentos, criando-se uma espécie de déficit de empatia”, considera Gomes. Ele ainda destaca que é necessário um maior cuidado em relação às crianças, porque são mais suscetíveis aos efeitos em estágio de desenvolvimento de habilidades cognitivas e emocionais.

Na visão de Gomes, o surgimento das redes sociais favoreceu uma nova dinâmica na circulação dessas imagens em função da rapidez da disseminação, da interatividade permitida e dos direcionamentos que podem ser feitos com base em algoritmos. Os discursos de ódio disseminados nas mídias, por exemplo, tendem a radicalizá-los ainda mais e promover imagens cada vez mais violentas e impactantes.

Além disso, o especialista discorre sobre os efeitos psicológicos do lado daqueles expostos nas imagens de violência, como das vítimas de conflitos armados: “A exposição pública de alguém como vítima de violência rompe com uma separação necessária entre os espaços público e privado, retirando o controle sobre sua própria imagem e afetando a sua autoimagem e, eventualmente, toda a sustentação da sensação de identidade própria”.

Atenção psicossocial à violência nas redes sociais

O pesquisador Gomes ressalta a importância da preservação da individualidade de cada um em casos de angústia psicológica, na medida em que pode haver experiências anteriores a serem consideradas. “Pensar como se colocar diante dessa questão vai passar muitas vezes pela busca de redes de apoio de proteção e processo terapêuticos também”, avalia ele.

Outro cuidado mencionado, em casos de pessoas já adultas, é a própria autopercepção do tempo de exposição aos conteúdos, a fim de entender a diferença entre um uso informacional e o uso prejudicial. Além disso, a autopercepção vai ao encontro da necessidade destacada pela professora de interromper a dinâmica circular dos algoritmos, na medida em que se barra o compartilhamento de conteúdos violentos.

Fonte: Jornal da USP, autoria de Raquel Tiemi

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