Os santos Cosme e Damião teriam realizado o primeiro transplante da história da humanidade, implantando a perna de um negro morto no corpo de um branco vivo. A história ganhou notoriedade principalmente após ser imortalizada pelo pintor italiano Fra Angelico
Transferir células, tecidos ou órgãos de uma pessoa para outra é um dos procedimentos mais complexos da medicina moderna. Sua concepção, no entanto, é milenar. Já no início do século VI, os santos Cosme e Damião teriam realizado um transplante de perna em um fiel devoto.
A história dos gêmeos médicos
Primogênitos de uma família de cinco irmãos, os gêmeos Cosme e Damião nasceram em Egeia, na região da Ásia Menor, por volta do século III. Eles exerciam a medicina de forma voluntária, não aceitando pagamento pelos cuidados aos doentes. Por isso, passaram a ser chamados de anargiras, que em grego significa “avessos ao dinheiro”.
“Quando eles resolveram se tornar médicos, seus professores foram os mais importantes doutores da Síria, onde misturavam aqueles que reivindicavam pertencer à Escola de Cnido e seus concorrentes, os que se diziam da Escola de Cós, portanto de Hipócrates. Na verdade, o ensino obedecia ao mesmo espírito, modelado pela atenção à miséria dos homens e pela busca incansável da verdade”, afirma o médico e professor Jean-Noël Fabiani, no livro “30 histórias insólitas que fizeram a medicina”.
De acordo com a publicação, os gêmeos eram conhecidos por serem amáveis, complacentes e modestos. Além disso, a semelhança entre os dois e a sintonia com que trabalhavam chamavam a atenção.
“Não havia gêmeos que superassem esses dois. Com exceção de sua mãe, ninguém conseguia distingui-los. Além disso, eram extremamente próximos: quando Cosme sofria, Damião também sofria; quando Damião estava feliz, Cosme saltitava como um cabrito. Em sua prática profissional ocorria o mesmo. Quando Damião pegava a lâmina para um corte rápido em um paciente, Cosme se precipitava com uma vasilha de unguento para amainar a dor. E tudo parecia a favor deles: as curas se sucediam umas às outras, e sua reputação inflava-se como uma vela soprada pelos ventos etésios na direção das ilhas e do mundo”, afirma Fabiani.
O sucesso dos médicos, no entanto, trouxe também alguns perigos. Naquela época, o Império Romano não aceitava o cristianismo. E, por Cosme e Damião serem cristãos e terem fama de operar milagres, foram perseguidos e assassinados a mando do imperador Diocleciano. A execução por decapitação teria ocorrido em 27 de setembro entre 287 e 303 depois de Cristo. A partir de então, os irmãos passaram a ser venerados, e no século V, foram canonizados pela dedicação com que tratavam os mais pobres.
O primeiro transplante da história da medicina
Mesmo depois de mortos, a fama de Cosme e Damião continuou a crescer. Em Roma, por exemplo, o papa Félix IV tinha certeza de ter sido curado graças aos irmãos. Como agradecimento, transformou a antiga biblioteca do Fórum da Paz em uma basílica para cultuar os gêmeos. A conservação do espaço ficou a cargo do diácono Justiniano, que depois de muitos anos de dedicação, precisou se afastar do trabalho devido a um cancro na perna, que provocava grande sofrimento.
Em uma noite, após sentir muitas dores e suplicar socorro a Deus, o diácono finalmente conseguiu dormir. Logo os gêmeos apareceram: um segurando uma lanceta; e outro, gaze e unguento. Segundo Fabiani, “Cosme disse a Damião: ‘Será preciso extirpar todas as implantações ósseas do cancro mortífero desta perna’. ‘É verdade, mas como poderíamos depois compensar a perda de matéria, já que a extirpação que você precisa fazer é certamente enorme?’. ‘Eu não tenho dúvida: a amputação se impõe, é a única solução. Mas faremos ainda melhor. Sei de um mouro da Etiópia que foi enterrado ontem no cemitério vizinho de São Pedro Acorrentado. Vá recuperar sua perna e eu a transplantarei para o corpo deste homem’. Damião se precipitou ao cemitério e, ele também hábil com o bisturi e a serra (após sem dúvida ter manuseado a pá!), trouxe rapidamente a perna negra do mouro, que permanecera tônica, sem vestígio algum de gangrena. Enquanto isso, Cosme realizara a amputação da coxa do diácono. Eles se ajudaram na realização do transplante e Cosme conseguiu fixar osso sobre osso e músculos sobre músculos. Em seguida, suturou as artérias, as veias e os nervos. Foi necessário em seguida costurar a pele, sobre a qual Damião espalhou, massageando bem os tecidos, uma pomada de sua composição. Sob seus dedos, ele sentia a vida voltar a habitar aquela perna sem extravasamento de sangue e sem edema”.
No livro, Fabiani conta que quando o diácono acordou, constatou que não sentia mais dor e que a perna doente tinha sido substituída por uma bela e saudável perna negra. Ou seja, não tinha sido um sonho! O diácono então correu para contar o milagre aos vizinhos. Quando alguém duvidava da história, ele não só exibia o membro novo como também incentivava as pessoas a irem ao cemitério para ver a antiga perna, enterrada por Cosme e Damião junto aos restos mortais do etíope.
As obras de arte sobre o transplante
O transplante de perna feito por Cosme e Damião ganhou notoriedade e foi imortalizado pelos traços do italiano Fra Angelico no quadro “A cura do diácono Justiniano”. A obra data de 1438-1440 e está exposta na Basílica de São Marco, em Florença.
Além de Angelico, anos mais tarde, já no século XVI, um pintor anônimo também retratou o primeiro transplante. Em um editorial escrito para o Jornal Oficial da Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, o médico e professor Andy Petroianu destacou a semelhança da pintura com uma sala operatória onde uma equipe cirúrgica realiza um transplante nos dias de hoje.
“Observa-se São Cosme, no papel de cirurgião, posicionado à direita do paciente, tendo ao seu lado direito um anjo com a função de instrumentador. São Damião foi retratado à esquerda do doente, em frente ao seu irmão, na posição habitual do auxiliar. O paciente está dormindo, vigiado por outro anjo, em atitude de anestesiologista. Há ainda o foco de luz natural vindo da frente do cirurgião para evitar a sua sombra sobre o campo operatório durante o procedimento cirúrgico. Portanto, não só o transplante, mas também a própria sala de cirurgia dos dias atuais, já eram imaginados há meio milênio”.
Cosme e Damião: padroeiros dos transplantados
Os santos Cosme e Damião são considerados padroeiros dos médicos, farmacêuticos e dos transplantados. No Brasil, no dia da morte deles – 27 de setembro – é comemorado o Dia Nacional da Doação de Órgãos e Tecidos.