Nesta série de reportagens, a Revista Ampla on-line aborda semanalmente o universo dos sonhos da perspectiva científica. Nesta última reportagem, você vai aprender a se lembrar e interpretar os sonhos
Quando o assunto é sonho, seja numa roda de amigos, com parentes ou colegas de trabalho, sempre tem alguém que fala: “eu nunca sonho”. Mas isso não é verdade. Todos sonhamos, várias vezes na noite. Inclusive, é possível até que tenhamos vários sonhos ao mesmo tempo.
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“Segundo essa hipótese, a sensação de termos um sonho único vem da presença da autorrepresentação do sonhador num único sonho por vez, assim como a presença de um ator em um cenário específico não impede que o estúdio possa rodar vários filmes simultaneamente”, afirma o neurocientista Sidarta Ribeiro no livro “O Oráculo da Noite”, da Companhia das Letras.
Quem afirma não sonhar, na verdade, não se lembra dos sonhos – o que é compreensível. Durante séculos, desde o início da civilização, os sonhos foram vistos como místicos, presságios, fontes de inspiração e mensagens dos deuses. Tanto é que estiveram no centro da política e da medicina na Grécia Antiga, no Egito e na Mesopotâmia. De centenas de anos pra cá, no entanto, isso mudou bastante e os sonhos foram perdendo a importância.
“O descrédito dos sonhos se aprofundou no século XVIII, com o racionalismo que está na origem tanto da ciência quanto do capitalismo”, afirma Ribeiro. “Pouco a pouco, passamos a enxergar bizarrice e constrangimento onde antes havia apenas encantamento e mistério”.
Sem ver os sonhos como uma fonte de compreensão de nós mesmos e dos caminhos que podemos trilhar, ficou difícil nos lembrarmos deles. Mas, com uma dose de boa vontade, é possível mudar essa realidade.
“Basta um pouco de autossugestão antes de dormir, com a disciplina de permanecer imóvel na cama ao despertar, para que a prolífica caixa de Pandora se abra. A autossugestão pode consistir em repetir, um minuto imediatamente antes de dormir: ‘Vou sonhar, lembrar e relatar’. Ao despertar, papel e lápis à mão, o sonhador de início fará um esforço para lembrar o que sonhou. A princípio a tarefa parece impossível, mas rapidamente uma imagem ou cena, mesmo que esmaecida, virá à tona. A ela o sonhador deve se agarrar, mobilizando a atenção para aumentar a reverberação da lembrança do sonho. É essa primeira memória, mesmo que frágil e fragmentada, que servirá como peça inicial do quebra-cabeça, a ponta do novelo a desenrolar. Será através de sua reativação que as memórias associadas começarão a se revelar”, sugere Ribeiro.
Mesmo sem ter acesso ao sonho propriamente dito, mas somente à lembrança dele, o hábito de descrever os sonhos logo ao despertar é uma forma de exercitar a memória e de entender melhor a si mesmo e a própria realidade. Para algumas pessoas, desenhar pode ser mais fácil, o que também é válido.
Como interpretar os sonhos
Há 3 mil anos, no Egito, já existiam manuais de interpretação dos sonhos. Sonhou com cobra? Traição. Sonhou com dente caindo? Alguém próximo vai morrer. Com a popularização dos meios de comunicação, esse tipo de guia se multiplicou e fez com que a maioria dos pesquisadores olhassem para os sonhos com descrédito. Até que, em 1900, Sigmund Freud publicou o livro “A interpretação dos sonhos”. A obra descartou qualquer possibilidade de atribuir significados universais aos sonhos e cravou que somente o sonhador ou alguém que conhece muito bem sua realidade poderia interpretá-los.
“A compreensão da motivação de um sonho exige o entendimento do contexto subjetivo do sonhador no tempo presente. Apenas nesse contexto é possível a interpretação onírica. Símbolos costumam ter significados muito privados, dados pelas redes de associação que unem sentidos por semelhanças conceituais ou fonéticas, por signos polissêmicos individuais que não se prestam ao uso de chaves gerais, comuns a diferentes pessoas ou culturas. O sonho é um objeto particular”, afirma Ribeiro.
Até hoje, no entanto, muitos sites e revistas se dedicam a interpretar os sonhos como faziam os antigos, desconsiderando crenças, medos, desejos e o que se passa na vida do sonhador.
Em uma rápida busca na internet, por exemplo, é possível encontrar que sonhar com vaca é um bom presságio, símbolo de colher bons frutos na vida. Mas será que para alguém que já foi atacado pelo animal teria esse mesmo significado? E para um vegetariano? Um açougueiro? Um pecuarista? Um apostador assíduo do jogo do bicho? E para um indiano – que considera a vaca um animal sagrado? Esses são apenas alguns exemplos, mas já dão uma ideia de como os sentidos podem variar para cada sonhador.
Além disso, para interpretar um sonho, é preciso levar em conta as experiências e expectativas do sonhador. Interpretações muito simplistas também podem levar ao erro, já que a maioria dos nossos sonhos, por trabalharem com associações simbólicas, são ambíguos e indiretos.
“Diante da enorme quantidade de variáveis não controladas, a simulação onírica frequentemente erra suas “previsões”. Vez por outra, entretanto, a simulação calha de coincidir com a realidade, e aí o sonhador constata que o oráculo de fato pode, sob certas condições, fazer predições corretas. O sonho funciona, portanto, como um oráculo probabilístico, não muito diferente do que se acreditava na Antiguidade em termos de suas consequências para o sonhador, mas bastante diferente quanto a sua natureza: no lugar da certeza motivada por hipotéticos mecanismos externos de geração do sonho, de caráter divino ou espiritual, a incerteza inerente a sua natureza biológica. As imagens oníricas não revelam, portanto, o destino do sonhador amanhã, mas apenas seu rumo aparente hoje”, constata Ribeiro.
Veja a primeira parte dessa série: A ciência do sonho: afinal, o que é sonho?