Nesta série de reportagens, a Revista Ampla on-line aborda o universo dos sonhos da perspectiva científica. Confira o segundo texto!
A jornalista Silvane Maltaca não costuma ter muitos pesadelos. Ou, pelo menos, não se lembra de tê-los. Mas essa realidade mudou bastante no fim do mês de agosto, quando ela estava prestes a defender sua tese de mestrado. Foram alguns dias sonhando com a apresentação, que vinha carregada com o famoso e temido “branco”.
“Sonhei que estava na frente da banca, não me lembrava de nada e os professores me olhavam com aquele olhar inquisidor. Eu não lembrava meu nome, nem o nome da Agnes Varda [tema da tese]. Olhava para os slides e faltavam alguns, como se a apresentação estivesse incompleta. Foi tenso”, conta ela.
O impacto do sonho foi tão grande que a sensação de angústia persistiu mesmo depois de acordar. Ou seja, para a parte emocional do cérebro, aquilo realmente tinha acontecido. “Demorava um pouco até eu me acalmar e correr para estudar mais um pouco, com medo que acontecesse de verdade”.
Não aconteceu. A apresentação foi um sucesso e, logo após a defesa, o conteúdo onírico voltou ao normal. “Meus sonhos vão bem obrigada!”, diz aos risos. “Não lembro o que sonhei, mas finalmente dormi bem de novo depois de uma semana de sono agitado”.
Sonhos como o de Silvane, que envolvem esquecimento e sensação de despreparo, são bastante recorrentes entre estudantes às vésperas de provas e apresentações. Muita gente sonha também que está caindo, voando, nua em público, atrasada para algum compromisso ou tendo um encontro com uma celebridade. Também são comuns sonhos com dentes caindo, perseguição e dificuldade para encontrar um banheiro.
Alguns tipos de sonhos
Sonhos podem ser bons ou ruins, fazer ou não sem sentido, refletir medos ou desejos. Podem ainda envolver todos os outros sentidos além da visão. O neurocientista Sidarta Ribeiro, no livro “O Oráculo da Noite”, da Companhia da Letras, divide o sonho em três tipos básicos: o pesadelo, o sonho gozoso e o sonho de perseguição de algum objetivo – que geralmente não se concretiza.
O pesadelo “corresponde a situações desagradáveis que não temos poder de controlar ou evitar. A iminência da agressão e o medo dão a tônica do sonho mau, que se sustenta pelo adiamento do desfecho temido”, explica o autor.
Já o sonho gozoso “é o contrário do pesadelo, apresentando situações prazerosas desprovidas de qualquer nuance de conflito. Esse tipo de sonho frequentemente alimenta desejos que seriam impossíveis na vigília, satisfazendo o sonhador de forma plena e irreal”, afirma o neurocientista.
Por fim, os sonhos perseguição infrutífera de algum objetivo – que são a maior parte dos sonhos que temos – se caracterizam “pela busca frustrada da satisfação do desejo, em que a simulação da busca de objetos vários se dá através de tentativas incompletas, imperfeitas e sobretudo malsucedidas”, conta Ribeiro.
Qual a importância de sonhar?
Dormir e sonhar trazem uma série de benefícios para a saúde física e mental. Os sonhos, especificamente, podem ajudar a consolidar memórias, curar traumas, amenizar fobias e aumentar a plasticidade neural. Podem também antecipar acontecimentos, ajudar a processar as emoções do dia anterior, resolver problemas e testar soluções. Tudo feito em segurança, em um ambiente que não interfere na realidade.
“O sonho é um momento privilegiado para prospectar o inconsciente, agregando pistas sobre os riscos e oportunidades do ambiente, muitas delas subliminares, mas ainda assim passíveis de serem integradas numa impressão geral do que pode vir a ocorrer. Com base em ontem o cérebro simula como será o amanhã. O sonho pode, portanto, ser considerado um teste de hipóteses em ambiente de simulação, com ciclos de fortalecimento seletivo de memórias durante o sono de ondas lentas, estocagem genômica disparada no início do sono REM e reestruturação de memórias em longos episódios de sono REM. Realizando a cada noite vários ciclos consecutivos de mutação e seleção de memórias, o cérebro adormecido consolida as melhores estratégias que é capaz de conceber em sonho”, afirma Ribeiro.
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Do ponto de vista da psicanálise, o sonho é uma forma de acessar o inconsciente. Ou seja, é importante para entender o que se passa na mente do sonhador, com a vantagem de que, no sonho, há menos censura do que na vigília. Também do ponto de vista clínico, mas agora da psiquiatria, o sonho pode ajudar no diagnóstico precoce de esquizofrenia.
Pesadelos também podem ser benéficos
Como os sonhos geralmente são reflexo das nossas emoções, pessoas tomadas por medo, angústia, estresse, ansiedade, insegurança e traumas costumam ter pesadelos.
“Não é difícil entender de onde vêm os pesadelos da pessoa traumatizada. Por ter sido codificada com tanta força, a memória do evento violento é excessivamente intensa, possui conexões sinápticas muito fortes, o que as faz capturar e monopolizar a atividade elétrica gerada durante o sono. Mas nem todo pesadelo é motivado por um trauma específico. Sonhos muitas vezes possuem teor negativo, desde os pesadelos mais assustadores até sonhos de frustração e ansiedade, que chegam a ocorrer semanalmente entre 4% e 10% da população urbana”, afirma Ribeiro.
A boa notícia é que até mesmo os pesadelos podem ser úteis. Durante um sonho ruim, a amígdala – parte do cérebro que ajuda a processar as emoções – fica altamente ativa. Como resultado, quando acordamos, ela está mais eficiente, o que nos deixa mais bem preparados para controlar as emoções da vida real, como medo e raiva.
Além disso, segundo Ribeiro, “por ser capaz de simular possíveis perigos a serem evitados na vida real, o pesadelo pode preparar o sonhador para enfrentar os perigos do dia seguinte, treinando roteiros de ação ou simplesmente aumentando o alerta” – como aconteceu com a Silvane, do começo desta reportagem.
Em todo caso, bem diferente dos sonhos ruins esporádicos, os pesadelos frequentes podem ser um indicativo de outro distúrbio, trauma ou situação que precisa ser resolvida. Nesses casos, a psicoterapia é necessária para investigar o problema a fundo e encontrar uma solução.
Próxima reportagem
Na próxima reportagem da nossa série sobre a ciência do sonho, vamos abordar sonhos que renderam frutos na vida real.
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