A transição da medicina da forma que se entende hoje para a medicina personalizada e funcionando em rede parece ser um desafio crescente para os próximos anos. O que exigirá, de médicos e equipes, novos comportamentos e novos instrumentos, corroborando, como sempre, a ideia de formação contínua. À primeira vista, isso leva à visão de uma saúde extremamente tecnológica, mas passa despercebido àqueles menos avisados o quanto essas mudanças também exigem, cada vez mais, determinadas habilidades comportamentais que nenhuma máquina, nem a mais avançada inteligência artificial (até onde se visualiza possível), é capaz de suprir.
Por isso, a reflexão do papel do médico nos sistemas de saúde é tão vital. O médico sempre foi a principal porta de entrada de qualquer sistema. E, também, o coordenador de todo cuidado. O quanto isso pode ou não continuar como fato, talvez dependa, em grande parte, da autorresponsabilidade do médico em todo esse processo. Em especial, em cooperativas, nas quais ele é sócio e, portanto, tem poder de, em conjunto com os seus pares, fazer diferença na gestão integral do cuidado aplicado.
No fim de 2022, durante o 25º Congresso da Ordem dos Médicos, em Portugal, um grupo de estudiosos apresentou 40 recomendações para o futuro da medicina, pensando num cenário próximo, cerca de 20 anos à frente. Essa lista de recomendações chama a atenção porque foge das previsões-padrão, básicas e óbvias, no que diz respeito ao futuro da medicina. Como o tão citado fomento tecnológico, em especial quando se fala de inteligência artificial e da telemedicina. O grupo previu, entre os panoramas possíveis, duas principais versões. Uma mais positiva, outra negativa. Para eles, o principal desafio está na capacidade de fazer as reformas necessárias para o desenvolvimento das Saúdes, pública e suplementar. Isso implica o entendimento de velhos conceitos (investimentos x gastos públicos ou privados) e, também, de novos, como, por exemplo, a ideia de accountability (responsabilização) de políticos e de gestores nos resultados.
Para esse grupo de médicos, se os sistemas de saúde (eles falam especificamente de Portugal, mas cabe a qualquer sistema de saúde, inclusive o brasileiro) não se adaptarem à mudança, à inovação e aos novos conceitos, o cenário dos próximos anos será negativo. O cenário positivo implica ações concretas, transformações. Muito do que já se fala, mas que ainda não se faz, efetivamente. As 40 recomendações do grupo estão agregadas em seis eixos principais: (1) uma medicina de influências demográfica e populacional; (2) uma medicina baseada em valor; (3) uma sociedade mais saudável e com melhores estilos de vida; (4) uma medicina personalizada, sustentada no ambiente digital; (5) um sistema de saúde articulado e adaptado localmente; (6) e a criação do médico do futuro.
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O primeiro eixo diz respeito ao problema demográfico vivido pela Europa, de modo geral. A baixa natalidade, o alto índice de suicídio e o envelhecimento populacional estão colocando os países em desequilíbrio. O Brasil passa por esse processo também, e de maneira mais rápida do que passaram os países europeus. As áreas da saúde podem e devem promover o debate para o enfrentamento da situação com mais consciência e com o devido cuidado. Para o estudo, está ao alcance dos profissionais médicos, e da saúde, de modo geral, a melhora do nível de cuidados materno-infantis, o aprimoramento da rede de cuidados para a longevidade e doenças crônicas, e os cuidados mais próximos, menos hospitalares e mais ambulatorizados e tecnológicos, dispondo, ainda, de novos modelos de cuidados.
No eixo “uma medicina baseada em valor”, é preciso rediscutir nosso modo de atuação. Os cuidados de saúde são medidos essencialmente por produção. O que significa mais consultas, mais cirurgias, mais diárias hospitalares, mais sessões de quimioterapias etc. A recomendação é que possamos pensar em mais anos com mais qualidade de vida. Significa que a saúde deverá estar focada em melhores resultados, em acrescentar valor, tendo como ponto de vista aquilo que o paciente considera relevante para si. Isso inclui medir, avaliar e criar valor. Pensar mais no doente e menos no prestador. E médicos com mais competências em gestão e liderança.
O terceiro eixo fala de uma sociedade mais saudável. Segundo o grupo, o apetite do consumidor está focado na prevenção e na melhoria de estilos de vida. O cidadão é hoje, um consumidor de saúde, informação qualificada, disponível a todos, e a consciência da prevenção no decorrer da vida são fatores que devem tomar cada vez mais espaço. Para esses médicos, até o conceito de prestadores de cuidados deve se alterar muito em breve. A aposta na prevenção, utilizando dispositivos móveis dos mais variados, acredita-se que vai modificar o modo de se encarar doença e saúde.
“Uma medicina personalizada sustentada em ambiente digital” constitui o quarto eixo desenhado nas recomendações. Para o grupo, a criação de um “alter-ego” e de um ambiente digital único para cada doente permitirá incrementar o acesso a um conjunto de cuidados nunca antes imaginados. Isso inclui a medicina personalizada, a tecnologia disruptiva como aliada, a governança de dados, um sistema de saúde ajustado à realidade e a inclusão digital de médicos e pacientes.
No quinto eixo, temos um sistema de saúde articulado e adaptado localmente. Isso significa um alinhamento entre os sistemas de Saúde público e suplementar, modelo de informação de base georreferenciada, modelo de cuidados ajustado às necessidades sociais e demográficas de cada comunidade e humanização centrada no percurso e experiência dos usuários, automação e robótica, entre outros.
No sexto e último eixo, os médicos falam da criação do médico do futuro. Um upgrade do médico de hoje. Esse profissional terá de ser mais digital, mais tecnológico, ter acesso imediato à informação, ter mais acesso à investigação, dominar novas linguagens, liderar equipes, trabalhar em rede, ser mais empático e próximo dos doentes, dialogar com outras profissões, lidar com novas doenças e ter de ajustar seu modo de atuação a novos desafios, de maneira extremamente rápida.
“Qual é o papel da cooperativa em meio a tantas transformações?”
O grupo fala dessa medicina que já chegou e inclui nas equipes de saúde engenheiros de sistemas, especialistas em machine learning, em segurança informativa e em estratégia digital, engenheiros de computação quântica, entre outros. O diferencial, no entanto, é que eles chamam a atenção para o fato de que a medicina continuará a não se fazer só com base em conhecimentos técnicos, mas da consciência do cuidado de pessoas. A relação médico-paciente será cada vez mais impactante.
Qual é o papel da cooperativa em meio a isso tudo? Em meio a esse mundo, extremamente tecnológico, e caminhos cada vez mais desafiadores em todas as áreas? É importante frisar o quanto a cooperativa é esse ente capaz de promover a conexão de todo esse universo: inovação e tradição, tecnologia e desenvolvimento humano, pesquisa e prática, respeito à individualidade e força da coletividade, o necessário gerenciamento e a autonomia devida.
Para tudo isso, no entanto, o médico-cooperado, mais do que nunca, precisa assumir sua responsabilidade, o seu papel junto à cooperativa. Enxergar-se e atuar no centro da gestão. Será ele o responsável pela performance da assistência, pela remuneração e pelos rumos da profissão. Abrir mão disso poderá significar abrir mão de uma parte importante de valor que esses profissionais podem imprimir a esses novos cenários que estão sendo desenhados.
A atualização como médico, como gestor, como sócio, implica o entendimento desses papéis. Inclusive o apontamento de como a comunicação entre as cooperativas e os seus cooperados pode ser ampliada, para ser mais eficaz e eficiente em prol de todos os atores desse ecossistema: cooperativa, cooperados, beneficiários e colaboradores.
– Paulo Roberto Fernandes Faria, presidente da Unimed Paraná