Caminhamos rumo ao isolamento?

(Foto: Freepik)

Endereço: Planeta Terra. Essa seria a melhor forma de descrever o destinatário da Camila Boga, após incontáveis transições de cidade e país. A violência motivou a primeira mudança ainda na infância, quando deixou São Paulo (SP) para viver com a família em Curitiba (PR). Essa foi uma das primeiras quebras, pois, naquele momento, era forte a conexão com os primos e a família paulista. Aos poucos esse distanciamento geográfico acabou por criar um abismo entre os parentes e, hoje, as conexões se tornaram raras. O núcleo familiar foi reduzido.

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Depois de formada, Camila ficou no eixo entre a capital paranaense e paulista até mudar para Campinas (SP). Voltou para São Paulo, logo foi parar em Blumenau (SC) e alguns meses antes de mudar para Europa, retornou a Curitiba. Em solo europeu, com a filha recém-nascida, começou morando na Holanda, onde permaneceu por quase três anos. Logo no início da pandemia ela, o marido e a filha foram para Munique, na Alemanha, vivendo lá por quase um ano. E agora, no final da segunda gestação, Camila está em Berlim, capital alemã.

A experiência acabou por facilitar os deslocamentos, o recomeço se tornou uma constante e, conjuntamente, com marido e filha, foi abrindo espaço para reestabelecer os lares em territórios diversos. As bagagens e a burocracia acabaram por se tornar uma questão comum, porém, ao partir para cada novo destino, um sentimento nunca deixou de estar presente: a solidão. “Todas essas mudanças e a maioria foi por escolha própria, seja por motivos pessoais ou profissionais, foram minando minha rede de apoio e conexões de amizade. Além disso, sabotaram as relações familiares por conta da distância e do fuso. Manter um relacionamento exige sempre disponibilidade e essa movimentação foi gerando um isolamento”, compartilha Camila.

Apesar de não estar sozinha e isolada, mantendo sua atuação como diretora de Design & Insights na Flutter Innovation, e dividindo a vida com o marido e a filha, existem outros aspectos, como o expatriamento e a maternidade que geraram outro tipo de solidão ocasionado pela falta de referência e conexão em uma fase importante da vida. “Tive minha primeira filha no Brasil e em três meses nos mudamos para a Holanda. Então eu tive um puerpério muito agitado e cheio de mudanças. Mal tinha me recuperado da cesárea e já comecei a organizar a amamentação e os cuidados com a bebê. Quando vi, estávamos mudando. Apesar do apoio com as burocracias, pois meu marido estava sendo transferido por uma empresa, foi uma corrida para conseguir passaporte e vistos, bem como saber o lugar que iríamos morar e, no meio disso, ainda estava trabalhando”, conta a designer.

Como as mudanças faziam parte da sua vida e o isolamento da família já era uma realidade, Camila relata que o puerpério acabou não sendo tão intenso quanto descrito por outras mulheres que ela acompanhava. A solidão, em certa forma, estava ali presente em sua jornada, porém a soma de todas essas mudanças começou após seis meses, quando a adaptação deixou de ser novidade, a vida doméstica e o contato quase exclusivo com a bebê eram a única realidade e o distanciamento de pessoas adultas começou a pesar. “Em seis meses, eu mudei de uma profissional liberal superativa para uma situação focada na vida doméstica e no trabalho remoto com contato quase exclusivo por e-mail e conferências. Em uma situação de privilégios, conseguir entender o turbilhão de emoções. Depois de um tempo entendi e conheci muitas mulheres na mesma situação. Então minha reconexão acabou sendo com outras mulheres igualmente expatriadas que também tiveram filhos e filhas ou que mudaram com crianças. Amizades improváveis por outras afinidades, porém unidas pela condição”, observa Camila, ressaltando que nem todas as escolhas e os aprendizados anteriores evitaram o sentir-se solitária.

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Dessa solidão, sem endereço fixo ou distinção geográfica, as histórias vão se entrelaçando e a tônica, ainda que em realidades diferentes, alimenta-se de narrativas semelhantes. Da mesma metrópole deixada por Camila na infância, a pesquisadora Juliana Silva aprofunda a reflexão entendendo que a solidão é comum e recorrente em um mundo individualista, e pode ocorrer em diversos momentos da vida. “Ela (solidão) entrou forte em minha vida quando me entendi na categoria de mãe solo. Não que necessariamente significa se sentir só, mas, muitas vezes, significa isso, sim. Aqui entra o peso da responsabilidade pela vida e educação de uma criança e o entendimento de como a sociedade relega todos os cuidados à mãe, o tempo todo”, relata. Para Juliana, durante a pandemia esse sentimento se intensificou com o afastamento das redes de apoio, o medo da contaminação, a responsabilidade ainda maior de cuidar da criança sozinha, sem a escola e os ambientes coletivos de convivência.

Em sua trajetória, percebe existir uma dificuldade geral e real em lidar com a solidão, que espreme as pessoas em relações não contemplativas, sejam afetivosexual, familiares ou amizades. “Eu tenho aprendido a diferença entre caber em lugares e pertencer. Acredito que este pertencimento é o que abraça realmente o coração para espantar a solidão. Se não rola a possibilidade de ser livre, de pertencer ao lugar, ao grupo, se identificar com as pessoas, vai sempre gerar essa sensação de exílio, mesmo com pessoas por perto”, divide Juliana.

Um sentimento inevitável e diversos contextos

A escritora Clarice Lispector em uma entrevista concedida em 1977 para o jornalista Júlio Lerner, na TV Cultura, disse que o adulto é triste e solitário, e que isso pode acontecer em qualquer momento da vida, basta um choque um pouco inesperado. De acordo com a área da Psicologia, a solidão é um sentimento, uma emoção, que atravessa a existência desde o nascimento. Enquanto bebê, o ser humano se sente desamparado em decorrência da condição e desconhecimento do próprio corpo, e assim necessita de apoio externo. “A solidão, enquanto experiência fisiológica, é estrutural, podendo, no decorrer da vida, ser subjetivada e receber diversos significados e significantes, dependendo da estrutura de personalidade, ambiente e experiências individuais”, complementa o psicólogo Ocimar Olivetti.

Passada a etapa de formação, o contexto e as estruturas sociais têm grande influência a respeito da solidão. Conforme observa Olivetti, os impactos dos ambientes e coletivos interferem nas pessoas se sentirem solitárias, principalmente, realidades de vulnerabilidade social como situação de desvantagens social, cultural, política, étnica, física, religiosa ou econômica. Obras de autoras negras, como Grada Kilomba e Bell Hooks, evidenciam, por exemplo, como o racismo, principalmente contra a mulher negra, é um fator de isolamento social. No livro ‘Memórias da plantação: episódios do racismo cotidiano’, Grada, que é psicóloga, apresenta sua tese de doutorado, mostrando os impactos psicológicos provocados pelo racismo às mulheres negras, promovendo ainda reflexões sobre colonialismo, gênero, bem como o conhecimento e a linguagem enquanto um campo de disputas sociais.

“Pensar em malefícios para a saúde física e emocional a partir da experiência de solidão é mergulhar na individualidade do sujeito, pois cada um experiencia o processo de solidão ou solitude individualmente. A depender de múltiplos fatores, a experiência pode ser mais ou menos dolorosa. De maneira genérica, podese dizer que a permanência num ambiente subjetivo de solidão, a pessoa pode sofrer com sintomas depressivos e de melancolia”, destaca o psicólogo.

O século da solidão

Em 2017, a solidão foi considerada uma epidemia mundial entre adultos mais velhos. Pesquisadores da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) fizeram a estimativa da prevalência da solidão em adultos com 50 anos ou mais e foram surpreendidos com a solidão, diminuindo de 32,8% no período pré-pandemia para 23,9% no período da pandemia. Entre as explicações está o fato de o distanciamento social manter as pessoas em casa, até devido ao trabalho remoto, acentuando a convivência, além de ampliar a manutenção do contato entre as famílias via aplicativos.

Embora nada substitua o presencial e a troca de olhares, essas medidas contribuíram para a preservação da saúde mental desse grupo. Importante destacar, ainda, que, proporcionalmente, os entrevistados que se sentiam sozinhos ‘sempre’ antes da pandemia seguiram durante esse período, ou seja, a melhora na solidão foi compreendida como “mais leve”. Nesse mesmo período, uma pesquisa realizada pelo Instituto Ipsos posicionou o Brasil em 1º lugar no ranking global de pessoas que mais sofreram com a solidão na pandemia. O estudo analisou 28 países, e 50% dos brasileiros entrevistados declararam se sentirem sozinhos. De acordo com o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2019, no país, 11,7 milhões de pessoas moram sozinhas. Alguns países, como Reino Unido, Austrália e Dinamarca criaram políticas públicas para lidar com essa questão do isolamento durante a Covid-19 e minimizar os danos à saúde física de suas populações.

Afinal, no meio de tanta conexão, como e por que crescem os solitários e solitárias? A avalanche de informações, as redes sociais, e a infinidade de possibilidades para conexão não parecem atenuar a necessidade do contato. Em outro lado, essas ferramentas permitem criar uma versão que não é sempre crível ao que anteriormente era conhecido como “vida real”. “Quase não conseguimos mais definir onde acaba a vida virtual e começa a real, mas as diferenças existem, e precisam ser observadas. O desejo de sustentar uma identidade perfeita, feliz e conectada o tempo todo (online) tem gerado nações de insatisfeitos e depressivos, buscando incessantemente por um gozo que não se inscreve no real. Somos imperfeitos, solitários e faltantes, e quanto antes aceitarmos essa estrutura, mais cedo poderemos dar conta da experiência humana na terra.

A ilusão da felicidade estática, da completude ou das promessas de realização total são produtos plásticos e não cabem numa vida humana saudável”, explica Olivetti. A doutora em engenharia de materiais, Marina Vasco, partilha que, em sua experiência durante os seus estudos na Grécia, o digital serviu para encurtar as fronteiras e aliviar a saudades da família, porém nunca foi suficiente na parte relacional. “Na época, eu não conhecia ninguém por lá e não falava o idioma. Como já tinha a possibilidade de chamada de vídeo, isso facilitou um pouco, porém eu venho de uma família em que é comum pedir companhia para ir ‘só até ali’ na farmácia escolher um esmalte novo ou sair pra tomar um café durante a semana, então foi um grande desafio viver a solidão”, relembra Marina.

Sem encontrar uma resposta exata para esse dilema social, as palavras do historiador e professor, Leandro Karnal, concedem uma direção de que forma a vida e a solidão se cruzam no decorrer da jornada e exigem a contínua reflexão sobre o tema: “Eu nunca estarei pleno estando sozinho, e nunca estarei pleno estando com outras pessoas, as minhas incompletudes são levadas ao grupo e são levadas igualmente para dentro de mim quando estou sozinho, pois eu me carrego com os meus medos, angústias e com meus dramas, inclusive para a solidão”.

Busca de apoio

Em sua jornada pela Europa, a diretora de Design & Insights na Flutter Innovation, Camila Boga, diz ter encontrado apoio de diversas formas, vezes com grupo de brasileiras que passavam pela mesma situação de expatriamento e maternidade ou com outras estrangeiras. E que é preciso estar alerta à solidão, pois, em seu caso, com o afastamento de toda família e rede de apoio, percebeu o impacto emocional.

“Por mais que não pareça, quando você vai perdendo esses laços isso afeta muito o emocional. Você começa a perder momentos da família, momentos importantes no geral. Há alguns anos não entendia como solidão, mas acho que é uma evidência do quão importante é estar presente em algumas circunstâncias, apenas para o
estado emocional e os relacionamentos”, partilha Camila.

Sem romantizar, reduzir a experiência da partilha de vida a uma pessoa e assumindo a presença da solidão no decorrer da jornada da vida, a pesquisadora Juliana Silva
entende que essa é uma consequência muitas vezes das escolhas e da busca por autonomia. “Quando escolhemos nos ouvir e fazer uma escolha mais autônoma, podemos nos afastar do que as pessoas querem e do que era esperado de nós. Isso em qualquer situação. Então, existe um esforço de entender o que queremos e como colocar isso em prática, a fim de construir uma vida autônoma. Às vezes, pagamos o preço dessa escolha nos diversos âmbitos da vida, e vejo isso acontecer, por exemplo, na criação do meu filho. A família ou rede de apoio muitas vezes concorda em ajudar apenas quando é da forma que consideram aceitável. Não vamos glamorizar a independência, pois precisamos das pessoas e de ajuda, porém, se não estabelecermos esses espaços, acabaremos vivendo a história dos outros, em vez de viver nossas próprias histórias possíveis”, relata Juliana, que reforça que a questão da solidão e do preço das escolhas se estende pelas diversas experiências da vida de uma pessoa.

O que fazemos da solidão?

Acelera o envelhecimento, ocasiona diabetes, causa depressão e estresse, além de hipertensão e problemas cardiovasculares. Segundo diversos estudos, essas são doenças agravadas pela solidão, que costuma gerar as sensações de angústia, dor, medo e tristeza. Esse desconforto do estar só, quando essa situação não representa uma escolha, pode representar um verdadeiro risco, porém é necessário aprender a conviver e estar solitária ou solitário. O primeiro passo é sempre observar as situações, contextos e reações corporais quando a solidão se apresenta. “Percebo a solidão de diversas formas e em diversos momentos no meu cotidiano. Posso estar só ou mesmo acompanhada de muitas pessoas e, assim mesmo, me sentir solitária. Por exemplo, quando faço algo que fazia com minha melhor amiga, mesmo que eu esteja com outras pessoas, algumas vezes ainda me sinto só”, conta a bancária aposentada Emília Luczynski, sobre sua experiência.

Nessas ocasiões, como recurso para superação da melancolia, Emília diz que costuma lembrar das oportunidades e dos momentos maravilhosos vivenciados. “Considero que a solidão é necessária para que eu possa avaliar o que sinto diante do que me é apresentado ou do que não me é apresentado e eu gostaria que fosse”, observa. De acordo com o psicólogo Ocimar Olivetti, as emoções apontam às necessidades e acabam servindo de combustível para o engajamento nos processos de mudança no contexto de vida. Assim, quando a solidão surge, o indivíduo sente que precisa buscar conexões saudáveis com outras pessoas ou grupos. “Acionar antigos amigos, ligar para algum parente ou aproximar-se de atividades relacionadas à profissão, esporte ou lazer podem amenizar as sensações de vazio e proporcionar conexões afetivas. Já existem aplicativos que buscam conectar as pessoas em busca de amizades e parcerias, grupos comunitários de apoio, grupos religiosos e de autodesenvolvimento com foco em relacionamentos humanos saudáveis que podem ajudar”, indica o profissional.

Além disso, a psicoterapia mostra-se como um recurso ímpar no manejo da solidão e seus atravessamentos, conforme pontua Olivetti, sendo um apoio no processo de contato com si próprio, e na conquista do autoconhecimento. A solidão acaba envolvendo uma construção individual dentro dos valores e sentido de vida de cada pessoa.

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