A ciência do sonho: afinal, o que é sonho?

o que é sonho
Pixabay/Ilustração

Nesta série de reportagens semanal, a Revista Ampla on-line aborda o universo dos sonhos da perspectiva científica. Mas o que é sonho?

É noite. Depois de um dia cheio de atividades, finalmente, chega a hora de dormir. Luzes apagadas, cabeça sobre o travesseiro, silêncio. Você está prestes a descansar. Já o seu cérebro vai passar por uma série de mudanças, de acordo com as diferentes fases do sono. 

“Primeiro experimentamos a entrega à penumbra das pálpebras cerradas, iniciando uma desconexão reversível entre corpo e mundo exterior. Em seguida surgem as transitórias alucinações oníricas do início do sono, que logo cedem terreno ao sono sem sonhos, um estado de abandonada quietude e grande redução da atividade sensorial. Finalmente, após quase duas horas, começam a emergir os sonhos intensos e vívidos dos quais por vezes lembramos ao despertar”, explica o neurocientista Sidarta Ribeiro, no livro “O Oráculo da Noite”, da Companhia das Letras.

Essa variação do conteúdo mental enquanto dormimos tem relação direta com os níveis de atividade elétrica no cérebro. Quando a atividade é baixa, principalmente na primeira metade da noite, prevalece a quietude. É o chamado sono de ondas lentas. Nele, a respiração fica lenta, a pressão arterial cai e a reverberação de memórias, matéria-prima dos sonhos, ocorre sem vividez. Ou seja, a pessoa até sonha, mas com pouca intensidade.

Já na segunda metade da noite, quando prevalece a atividade cerebral alta, os sonhos deixam de ser fragmentos de pensamentos e sensações e ganham traços de realismo e enredos bem estruturados. Isso ocorre durante o sono REM, também chamado de “sono paradoxal”. O nome se deve ao fato de que embora o corpo esteja relaxado, o cérebro funciona de modo semelhante a quando estamos acordados. Aqui as ondas são rápidas, as memórias são reverberadas com intensidade, a respiração fica entrecortada e os batimentos cardíacos, irregulares. Além disso, os olhos se movimentam rapidamente, de um lado para o outro, para cima e para baixo – daí a expressão REM, em inglês, “rapid eye movement”.

Ao longo da noite, os episódios de sono REM vão ficando cada vez mais longos e intensos, podendo ultrapassar uma hora de duração e produzir relatos de sonhos bastante vívidos. Ao contrário do que se imagina, no entanto, não é só durante o sono que sonhamos. De acordo com Ribeiro, os sonhos ocorrem também quando estamos acordados. Só não os percebemos por causa dos enormes estímulos provocados pelos cinco sentidos – tato, olfato, visão, audição e paladar.

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“Parafraseando Freud, os sonhos são como as estrelas: estão sempre lá, mas só podemos vê-los durante a noite”, afirma o autor.

Mas, afinal, o que é o sonho?

De acordo com o dicionário Michaelis, o sonho é um “conjunto de sensações, percepções e representações mais ou menos realistas, geralmente visuais, que aparecem durante o sono”. É também um “conjunto de pensamentos, imagens, ideias e fantasias que se experimenta enquanto dorme”. Tais imagens e sensações são provocadas pela reverberação de experiências que vivenciamos quando estamos acordados, sejam elas conscientes ou inconscientes. Foi o que Freud, pai da psicanálise, chamou de restos diurnos.

“O sonho é um construto fisiológico, uma trajetória específica de ativações mnemônicas orientada firmemente pela bússola do desejo, mas nem sempre capaz de gerar um encadeamento narrativo vigoroso, emocionante ou belo. Cada sonho é um ensaio em si mesmo, uma possibilidade de representações que pode fracassar na primeira imagem, tropeçar na primeira cena, ou seguir em fabricação dinâmica até formar uma catedral de significados, com imensa liberdade de variações que vão desde o sonho das imagens imperfeitas e mortiças, bailado de sombras desandado em associações reprováveis, que pode causar sustos terríveis ou levar a situações tristes e lamentáveis, como também tecer enredos de profunda ressonância com as emoções vitais do sonhador, cheios de detalhes que se encaixam comoventemente para gerar uma composição autoral e verdadeira sobre si”, afirma Ribeiro.

Os sonhos podem durar alguns minutos ou até mesmo uma hora. Nesse período, o sonhador, que atua mais como observador do que como alguém no controle, pode experimentar sensações como surpresa, euforia, medo e preocupação.

Estranhos, sim. Aleatórios, não!

Sonhos podem ser bastante estranhos e confusos. Uma hora você está desesperado, fugindo de alguém que quer te matar. E no momento seguinte, como se nada tivesse acontecido, está no elevador do trabalho, dando bom dia para um amigo, que de repente vira um cavalo. A porta se abre e, em vez do escritório, você vê o mar. Fica preocupado, não por nada fazer sentido, mas porque esqueceu a roupa de banho.

É assim: com cortes repentinos, mudanças de cenário e transformações de personagens que o enredo onírico acontece. No sonho, não existe a crítica e a censura de quando estamos despertos. Também não existe a lógica – ou até ela exista, mas seja prejudicada no momento do relato do sonho.  

“Embora se acredite que o encadeamento onírico de memórias seja intrinsecamente menos coerente do que durante a vigília, é possível que a trajetória do sonho seja lógica e coerente, mas que os déficits de memória do sono REM não permitam reportá-la”, afirma Ribeiro.

A aparente falta de lógica, no entanto, não torna os sonhos aleatórios, ou seja, fruto do acaso. Tanto é que muitas pessoas experimentam o mesmo sonho várias noites, às vezes durante anos. É o caso da empresária Caroline Metestaine, que aos 8 anos perdeu o pai para complicações de uma pneumonia. A oportunidade de reencontrá-lo veio durante a noite, nos sonhos. “Toda vez ele falava que tinha voltado, que só tinha viajado, mas que agora tinha voltado para ficar”.

Ribeiro explica que “dado o número colossal de neurônios e de conexões sinápticas no córtex cerebral, é impossível explicar a ocorrência de sonhos repetitivos – e, portanto, de padrões de ativação neural quase idênticos – por meio de ativação cortical aleatória. Em outras palavras, seria impossível ter sonhos repetitivos se a sua gênese fosse completamente fortuita”.

Outro exemplo de que os sonhos não são aleatórios costuma acontecer com a jornalista Katna Baran. Recentemente, ela acordou, voltou a dormir, e continuou sonhando com a mesma coisa. Como se o sonho fosse um filme; e o acordar, o botão de pausa do controle remoto.

“Sonhei que estava casando. Foi tudo improvisado e eu estava atrasada. Não conseguia que o maquiador desse um jeito no meu rosto, minha roupa não tinha sido nem escolhida, mas, ao mesmo tempo, eu estava feliz, como me imagino num casamento. Fui dando um jeito em todos os ‘perrengues’ e passando para a ‘fase seguinte’ do sonho, que era, por fim, chegar ao altar. Acordei por volta de 7h30 com meu namorado saindo de casa para ir trabalhar, contei o sonho para ele, mas falei que não tinha chegado a hora do casamento ainda. Então voltei a dormir – e sabia que o sonho ia continuar! E continuou”, conta a jornalista, que por mais algum tempo ficou sonhando com uma série de empecilhos, como maquiagem borrada e convidados atrasados.

No fim das contas, o sonho acabou e o casamento não aconteceu. Quem sabe em um próximo sonho ou até mesmo na realidade o desfecho não seja diferente. Sem tantos apuros, com um sonoro “sim” e a felicidade que os pombinhos merecem.

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Próxima reportagem

Na próxima reportagem da nossa série sobre a ciência do sonho, vamos abordar os sonhos mais comuns, pesadelos e a importância do sonhar para a nossa vida. Acompanhe!