Equilibrar as emoções e sentimentos é uma equação que exige a união entre o profissional da saúde e o autocuidado individual, visando uma vida em harmonia com as complexidades atuais para uma gestão de saúde mental eficiente
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que uma em cada quatro pessoas vai passar por um transtorno mental no decorrer da vida. Segundo o psiquiatra Flávio Vervloet, há de fato um aumento nos diagnósticos de transtornos e uma tendência crescente. “É uma prevalência bastante significativa e o número é muito alto, uma vez que qualquer um pode desenvolver, ainda que de forma não tão grave, um quadro de transtorno mental”, pontua o médico.
Recentemente, o cenário da pandemia vem sendo apontado como responsável por essa elevação de casos relacionados com a saúde mental. Vervloet explica que o crescimento verificado acaba sendo decorrente dos impactos e mudanças nos cenários econômico e social, e que tem, principalmente, contribuído para o estado mental de ansiedade e desesperança, esses dois vinculados a fatores psicológicos.
“Além da questão biológica, existem fatores de risco para transtornos mentais que são essas situações envolvendo questões sociais e até existenciais. Então esses fatores, em situação como a pandemia, acabam sendo ampliados porque afetam a situação da vida, o que predispõe para maior risco de desequilíbrio psicológico. Porém, não necessariamente que isso gere mais transtornos mentais”, ressalta o psiquiatra.
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Impactos e caminhos
Proporcionalmente aos casos, surge o interesse em busca da cura e métodos que possam auxiliar na manutenção e equilíbrio das emoções por parte da sociedade e dos profissionais da saúde. A psicóloga analítica junguiana e psicoterapeuta corporal Godelieve Struyf-Denys, Sonia Regina Lunardon Vaz, reforça que apesar de o tema estar em alta, e embora a saúde mental não seja uma ferida aberta que escorre sangue, é necessário garantir maior relevância e consideração por parte dos profissionais e cientistas da área da saúde em longo prazo.
“Todos os índices indicaram que os transtornos da saúde mental sofreram um aumento considerável, ainda mais nesse período. No entanto, ainda não se fala em prevenção e muito menos num suporte adequado para receber e tratar a demanda. Temo que, no pós-pandemia, a saúde mental volte a ser a grande ignorada pelo sistema de saúde”, observa a psicóloga.
Nesse sentido, torna-se necessário ampliar o nível de consciência sobre a saúde mental, além do tratamento biológico dos próprios sintomas. Vervloet entende que, junto à prevenção, é fundamental o incentivo ao autoconhecimento. Para o psiquiatra, não há efetividade em ações preventivas de cuidados com a saúde mental como prática de atividades físicas, lazer, boa alimentação, qualidade de sono, meditação, entre outros, sem que, as pessoas modifiquem seu entendimento sobre a forma de viver e lidar com os problemas e incertezas presentes no dia a dia.
“A psiquiatria está se abrindo cada dia mais para aspectos que não são apenas biológicos, apesar de esse aspecto ainda ser prioritariamente considerado. Porém, os fatores de risco e fatores psicológicos sociais e culturais, e até existenciais estão mais presentes nos consultórios e, com isso, há uma expansão em relação aos tratamentos que estão mais integrados em um trabalho multidisciplinar. Vemos isso acontecer em uma perspectiva global e na saúde pública brasileira”, pondera o psiquiatra. Ainda segundo Vervloet, a tendência é que a partir do momento em que se for levando mais a sério essa questão dos fatores de risco, aceitando-os como válidos na manutenção e garantia de mais saúde, certamente será facilitado o tratamento do ponto de vista médico e do paciente.
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Raiz do problema
Na avaliação de Vervloet, ainda é muito recente para precisar os impactos reais e consequências da pandemia em relação à saúde mental. “Ainda não é possível falar sobre as causas em relação à pandemia porque são estudos muito complexos para se afirmar algo, pois quando afirmamos algo sem ter um estudo com maior riqueza de detalhes fica difícil chegar a uma conclusão que possa ser aplicada de forma prática”, enfatiza.
Além do período dos últimos dois anos, o modelo de vida atual acaba inevitavelmente interferindo na saúde mental e somente a reflexão sobre as prioridades pode ser capaz de reequilibrar a sanidade. “Nossa sociedade quer ter controle de tudo e estamos muito focados em produção, trabalho e menos em qualidade de vida. Essa necessidade de certeza que precisamos ter acaba provocando inúmeros distúrbios psicológicos e predispõe a transtornos mentais. Devemos encarar essas incertezas e a melhor forma de lidar é não tentar controlar o que não podemos. Para o que controlamos vale a pena ter uma postura mais objetiva e diretiva, sabendo que em diversas áreas não temos poder e nem gerência. Então, é preciso aceitar que, muitas vezes, vamos ter fases da vida e circunstâncias em que não vamos poder controlar. Quanto maior a necessidade de controle, maior a desestabilidade. Se aprendermos a enfrentar a vida passo a passo, sem projeção de futuro e lidar com o que é possível, avançaremos na superação de dificuldades”, reflete o psiquiatra.
Outro ponto destacado por Sonia é o fato de no meio do caos existir a necessidade de encontrar soluções imediatas. “Existe um apelo muito grande sobre a saúde física chegando até as raias do narcisismo, quanto à saúde emocional há uma corrida enlouquecida pelo imediatismo de soluções, como se houvesse uma frase ou um entendimento racional que amenizasse a dor ou mesmo a extirpasse. Empregam-se livros, cursos e frases de efeito com o intuito de serem pílulas curadoras. Se fosse assim, o mundo estaria em sua mais perfeita saúde mental visto a quantidade ofertada dessas ilusões”, pondera.
Segundo Sonia, para se alcançar a boa saúde mental, é necessário obedecer a um processo que pode se estender por algum tempo e durante essa jornada deve se investigar o cerne da questão, visando que a pessoa possa adquirir conhecimento emocional em relação às dores psíquicas. Como complementa Vervloet, sempre que a psiquiatria e a psicologia caminharem juntas, os ganhos são maiores em relação ao tratamento. “Os psicofármacos são soluções para tratar algo que desequilibrou, e dependendo da psicopatia, funcionam de forma preventiva, porém remédio e medicamento não geram saúde. Para ter equilíbrio, precisamos motivar e gerar saúde e isso acontece com a busca por um estilo saudável.”, conclui.
Mitologia, poder e reflexões sobre o presente
A humanidade encontrou diversas formas de explicar a existência, e a mitologia carrega muitos elementos dessa evolução que podem ajudar a compreender a atualidade. A psicóloga analítica junguiana e psicoterapeuta corporal Godelieve Struyf-Denys, Sonia Regina Lunardon Vaz, no texto “O Poder – A Saga do deus Wotan” traz essa reflexão sobre como o ser humano vem se relacionando a partir das estruturas de poder e os impactos na psique.
“É indispensável que em cada indivíduo se produza um desmoronamento, que se dissolva o que existe e se faça uma renovação sem impô-la ao próximo sob o manto farisaico do amor cristão ou do senso de responsabilidade social – ou o que quer que seja para disfarçar as necessidades pessoais e inconscientes de poder”. C.J.JUNG
O desejo de poder, no sentido de se apropriar de alguém ou de uma nação se encontra no bojo da espécie humana. O mitologema do deus nórdico Wotan expressa esse instinto e até mesmo a sua possibilidade de transformação quando dele nos tornamos consciente.
Tanto ideologias religiosas quanto ideologias políticas estão imbricadas no mitologema do poder que nos leva ao comportamento grupal desmedido devido ao seu caráter instintual.
O compositor alemão Richard Wagner compôs entre 1848 e 1874 um ciclo de quatro óperas épicas intituladas “O Anel do Nibelungo”, cujo principal personagem é o deus nórdico Wotan, em referência a esse instinto desmedido. O exame desse nosso legado mitológico pode ser estarrecedor ao verificar que ele se traduz numa metáfora do que se apresenta em nosso tempo histórico e atual.
Na ópera, o anão Alberich furta o ouro alojado no fundo do Rio Reno e guardado pelas assim chamadas donzelas do Reno e com o ouro forja o Anel do Poder que passa a ser cobiçado por todos. Quem o possui se converte em alguém que destrói coisas e pessoas para continuar a possuí-lo.
Alberich representa uma potência que, embora madura, não alcançou o reino das alturas. Nos contos e nos mitos, representa a celebração da matéria, do corpo em si poderoso em ser capaz e não em corrupção do poder.
Note que esse instinto, furta o ouro da Terra, do feminino, enganando as mulheres que o protegiam. Aqueles e aquelas que usam o anel do poder forjado com o ouro do feminino são os mesmos e as mesmas que dela escarnecem e destroem.
O deus Wotan carrega junto de si um cajado todo cunhado com as leis que ele mesmo constituiu e, ai daquele ou daquela que não o obedece, com certeza, encontrará sua fúria e destruição.
Wotan contratou dois gigantes para lhe construir um templo sagrado no qual ele mesmo seria adorado. Como forma de pagamento aos construtores entregou a deusa Freya aos gigantes. A deusa Freya é a deusa da beleza, do amor e da juventude e foi assim feita de moeda de troca pelo poderoso e autoritário deus.
O preço a pagar é a destituição do amor, da leveza e harmonia que nos traz a beleza e da intensidade de vida que nos faz jovens em qualquer tempo quando não somos seduzidos pelo mitologema de Wotan.
Wotan é o deus dos raios e dos trovões, provocando clima por vezes aterrador e é também o deus dos disfarces. Disfarçou de mendigo e clamou pelo espírito da Terra, a deusa Herda.
Gritou: “Herda, levanta-te do sono do conhecimento e venha ter comigo!”.
Significando que Herda deveria deixar seus conhecimentos e ir para ele apenas com a emoção. Esse é um grande alerta: as pessoas não devem se entregar somente pela emoção, não devendo jamais abandonar seus conhecimentos para atender aquele ou aquela que se faz de mendigo. A pessoa disfarçada de vítima sempre esconde um algoz.
Na sequência, a Deusa da Terra se levanta e, ao chegar próxima a ele, Wotan, com escárnio lhe diz: “Agora volte a dormir”.
Wotan só pretendia saber se ele mantinha poder sobre ela ou não.
A fúria do deus Wotan, na conquista de poder, destrói pessoas, nações e sendo ele o deus das intempéries, modifica o clima por onde passa, fazendo estragos e tornando o lugar pesado. Onde quer que esteja o deus Wotan, entendemos que temos que ‘pisar em ovos’ e agir com cautela para que o céu não nos caia sobre a nossa cabeça. Conta o mito que, para aplacar sua fúria, existe apenas uma solução: sacrificar o cordeiro! O cordeiro é símbolo do amor inocente.
De modo que, para nos livrarmos de um Wotan, devemos sacrificar o cordeiro, sacrificar o amor que por ele sentimos, dizer em alto e bom som “eu tenho amor por você , mas lhe dou!”. Vai doer e sangrar, mas é a única solução, pois todos os sentimentos que entregamos só o tornam ainda mais furioso e altivo.
A regra é o poder em vez do amor e atitudes com objetivos e interesses próprios. Filhos e filhas ou se sujeitam à sua aprovação ou são rejeitados, punidos e ignorados. Esse é o retrato de nosso legado psicológico dessa cultura na qual Wotan predomina.
Precisamos desmoronar, dissolver o que existe, encarar esse instinto primário e torná-lo sintonizado com o amor que também nos habita. Afinal, não nos encontramos mais nas cavernas e nem na savana onde éramos o mais frágil. Hoje somos nós os maiores predadores, temos o poder da transformação em nosso anel.
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