A crise de hiperfadiga

uso de telas e hiperfadiga
Ilustração/Freepik

Intensificação no uso de telas está trazendo impactos severos à saúde mental, emocional e física das pessoas, acendendo alertas

A TV saiu do quarto e a leitura tem estado presente na hora de dormir com o exemplar físico de publicações voltando a ser uma opção. Esses foram alguns hábitos modificados pela Elaine Martins da Silva para evitar a queda na qualidade do sono, a insônia, o sono agitado e as noites mal dormidas, sintomas que a analista de sistema de T.I. e tutora de pós-EAD na Universidade Tuiuti passou a enfrentar como consequência das horas prolongadas em frente à tela. Elaine percebeu que a dificuldade de dormir ocorre exatamente nos dias de alta exposição em frente ao computador. Ao despertar, a sensação de cansaço continua.

Para além do trabalho, a analista diz que ficou evidente o tempo de vida ‘perdido’ e o risco que a tecnologia pode representar. “Eu percebo que a pandemia agravou um comportamento anterior. É, de certa forma, o ‘vício’ na falsa felicidade criada nas redes sociais. Ninguém posta a dificuldade financeira e, sim, aquilo que está aproveitando, como viagens e compras. Tudo bem fugir da realidade de vez em quando, porém o perigo é usar o computador, o celular e a TV como válvula de escape constante”, observa Elaine.

Elaine Martins, analista de Sistemas de TI
Reprodução/Arquivo Pessoal

Essa mudança de comportamento envolve o fato de que, para além da função específica do trabalho, cada vez mais estamos concentrando atividades recreativas igualmente em telas. Isso envolve a televisão e aplicativos de séries e filmes, videogames e redes sociais. No último ano, a facilidade de conexão despontou como um farol na manutenção dos empregos, porém o resultado apontado por especialistas é o alerta sobre as consequências no longo prazo pela ‘fadiga do Zoom’.

Esse termo está associado ao nome da plataforma que despontou, principalmente, em decorrência do isolamento social, e mostra as inferências em quem fica exposto às videoconferências por horas consecutivas durante vários dias. O estudo foi organizado pela Universidade de Stanford, nos Estados Unidos e Gothenburg, na Suécia, e entrevistou mais de 10 mil pessoas. As mulheres relataram, em média, sentir cerca de 13,8% mais os impactos quanto ao uso da ferramenta do que os homens.

Saiba mais: Como equilibrar o tempo na frente das telas?

Do ponto de vista médico, segundo o neurologista e membro titular da Associação Brasileira de Neurologia e da Associação Brasileira de Neurofisiologia, Márcio Bezerra, o uso excessivo da tecnologia traz consequências diretas no raciocínio. Isso implica em uma mente mais caótica, poluída, impaciente e com menos capacidade para pensamentos aprofundados. “Pesquisas indicam que a exposição prolongada aos dispositivos não estão apenas mudando a maneira como trabalhamos e nos divertimos, mas também afeta dramaticamente a maneira como pensamos, bem como aprendemos. Não memorizamos mais informações importantes, desenvolvendo a tendência de lembrar o local onde podemos recuperar as informações quando necessário”, explica Bezerra.

Márcio Bezerra, médico neurologista
Reprodução/Arquivo Pessoal

Consequências e alternativas

Conforme explica o especialista, o fato de manter a atenção sustentada durante uma tarefa cognitiva prolongada ocasiona altos níveis de fadiga mental. “Assim, após muitas horas de concentração, e as telas exigem isso, o funcionamento dos sistemas cognitivos que envolvem atenção, planejamento e estratégias de mudança adaptativa em face de resultados negativos acaba sendo prejudicado”, pontua Bezerra.

No mercado de tecnologia há mais de 17 anos, Gisele Lasserre considera que a pandemia deu luz a uma realidade de trabalho remoto que já era possível há muito tempo. Desenvolvedora de Software, hoje Gisele está à frente de duas empresas de tecnologia, a Tech Girls e a DNA Digital, e compartilha como parte fundamental desse novo modelo de trabalho a busca por equilíbrio entre aceitar demandas que podem parecer mais acessíveis, porém buscar momentos de pausa.

“No final de semana, pelo menos por algumas horas, busco desintoxicar. Saio para caminhar e ver paisagens que tranquilizam. Penso que, como as pessoas e as demandas do trabalho chegam até você de uma forma mais imediata, fica difícil manter a disciplina, ou seja, não responder as constantes notificações”, observa Gisele.

Depois dos desafios de adaptação da rotina e de saber o momento de pausar as atividades, a Scrum Master Carolina Paese sente-se 100% confortável em home office e pretende seguir assim até quando possível. Como alternativa para aliviar o brilho excessivo das telas, Carolina passou a usar óculos com proteção. Além disso, procura parar a cada 30 minutos para se alongar e aliviar o excesso de trabalho. E com as restrições de movimentação ocasionadas pelas regras de distanciamento social, procura caminhar pela casa como alternativa à tradicional ‘volta’ até a mesa dos colegas, como fazia no ambiente profissional.

Carolina Paese, Scrum Master
Reprodução/Arquivo Pessoal

A sensação é que aos poucos vai ocorrendo um ajuste e todos vão entendendo melhor os limites. “Antes da adaptação com o home office, eu sentia muito cansaço. Fora que sentia que não produzia. Hoje compreendo melhor as horas em que estou mais produtiva e busco resolver o que demanda mais atenção nesses momentos. Nos locais em que trabalho, tenho a oportunidade de falar “olha, não estou legal, vou parar por hoje, ok?”. Então, os períodos de cansaço excessivo acabam sendo apaziguados por essas quebras durante o expediente”, conta Carolina, deixando o gancho de que a fadiga existe de fato, e nada melhor do que buscar alternativas e dialogar para passar por esse período com o menor impacto possível.

Afinal, por que as telas nos cansam tanto?

Confira a seguir quatro motivos da fadiga ocasionada pelas telas e as possíveis soluções, segundo o neurologista Márcio Bezerra:

1. Quantidades excessivas de contato visual aproximado são altamente intensas. Solução: até que as plataformas mudem sua interface, recomenda-se tirar o zoom (a aproximação da câmera) da opção de tela inteira. A orientação é reduzir o tamanho da janela em relação ao monitor para minimizar o tamanho do rosto.

2. Ver a si mesmo, constantemente, durante conversa de vídeo em tempo real é cansativo. Solução: o ideal é que as plataformas mudem a prática padrão de transmissão de vídeo. Até que isso ocorra, a recomendação é que o usuário utilize o botão “ocultar visão própria”.

3. As videoconferências reduzem drasticamente nossa mobilidade usual. Solução: recomenda-se às pessoas adequarem o posicionamento da câmera e colocarem um teclado externo para ajudar a criar distância ou flexibilidade. Exemplo: uma câmera externa mais distante da tela permitirá acompanhar e rabiscar durante as reuniões virtuais, assim como em situações presenciais.

4. A carga cognitiva é muito maior em conferências de vídeo. Solução: durante longas reuniões, faça uma pausa e use a função “somente áudio”.

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