Quem cuida de nós: é essencial falar da qualidade de vida e da saúde mental de médicos
Dra. X (é como vamos chamar nossa personagem) já estava acostumada com uma rotina agitada no trabalho. Inclusive, esse foi um dos motivos para ela escolher a medicina como profissão. Ela, que sempre gostou de desafios e de cuidar das pessoas, tornou-se uma cardiologista apaixonada. Sua vida profissional se dividia entre os plantões em um hospital da cidade onde mora e o consultório pessoal. Um dia, porém, entre um atendimento e outro, a vida dela e de todo o planeta virou de cabeça para baixo: a pandemia de Covid-19 havia se espalhado pelo mundo e todos precisariam se isolar.
O que já era uma preocupação para Dra. X, que acompanhava as notícias do que estava acontecendo do outro lado do mundo, havia se tornado real. No dia seguinte, os pacientes do seu consultório começaram a cancelar as consultas. Todos estavam com medo de sair de casa. Já no hospital, o trabalho só aumentava. Não paravam de chegar casos com a tal Síndrome Respiratória Aguda. As UTIs não davam conta e, muitas vezes, era preciso escolher os casos mais graves para ocupar os leitos.
Dra. X passou a sentir medo de se contaminar e ficar em estado grave, como tantos de seus pacientes. Pior: ela tinha medo de contaminar seu marido e sua filha de 4 anos. Por isso, quando ia para casa, ficava em um quarto separado e, ao encontrar com os outros em um mesmo cômodo, estava sempre de máscara. Somado a isso, não paravam de chegar mensagens no seu celular de pacientes com dúvidas sobre tratamentos e sobre prevenção. Não havia consenso acerca dos protocolos a serem seguidos, dados científicos estavam sendo questionados como nunca antes e ela precisava passar parte do dia refutando notícias falsas. A sensação era de que nunca saía do trabalho e Dra. X via o estresse, a tristeza, a ansiedade e a preocupação tomarem conta da sua mente. Até que ela chegou ao seu limite e precisou procurar ajuda para lidar com tudo o que estava acontecendo.
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Dra. X é só uma personagem, mas aqui ela exemplifica o que aconteceu na vida de profissionais de saúde de todo o mundo que estiveram na linha de frente do combate ao Covid-19. Esse relato foi baseado em entrevistas feitas com médicos reais para esta matéria, que vem alertar a importância do bem-estar médico. A saúde mental de todos sofreu com a situação de emergência, mas, para aqueles que estiveram na linha de frente, algumas particularidades como as citadas acima agravaram um problema que já acontecia antes. Para se ter ideia, 9 em cada 10 médicos tiveram problemas de saúde mental no contexto da pandemia. O dado é de uma pesquisa da FGV (Fundação Getúlio Vargas) em parceria com a Rede Humanidades Covid-19, ligada à Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), e realizada em abril de 2021. As causas e os gatilhos? Todas essas que Dra. X experienciou, como explica o médico Nerlan Carvalho, presidente da Associação Médica do Paraná (AMP): “O confinamento necessário e a incerteza de evolução por ser uma doença nova levaram a um quadro de ansiedade e depressão e também ao que chamamos de burnout, cujo desdobramento refletiu profundamente no médico”.
Nesse cenário, o psiquiatra e membro do Conselho Regional de Médicos do Paraná (CRM-PR), Marco Bessa, diz que viu aumentar especialmente os distúrbios do sono, a ansiedade, a depressão, o uso de álcool, de tabaco e de outras drogas. Além do sedentarismo, com o fechamento de academias e outros espaços para atividades físicas. As jornadas de trabalho, que já eram longas, ficaram exaustivas, além de toda a demanda emocional que lidar com as mortes de pacientes e colegas de profissão causou. Só no estado do Paraná, até outubro de 2021, cerca de cem médicos morreram em decorrência da Covid-19. E muitos dos que se curaram, ainda precisam lidar com as sequelas da chamada Covid longa, como o comprometimento da capacidade intelectual e da memória.
Marlus Volney de Morais, diretor presidente do Sindicato dos Médicos do Paraná (Simepar) e diretor de Prevenção e Promoção à Saúde da Unimed Curitiba, também elenca como causa a dificuldade financeira que alguns médicos passaram pelo fechamento temporário de consultórios e clínicas e, ainda, a falta de recursos materiais disponíveis nas unidades de atendimento. Essa última condição impunha a necessidade de escolhas difíceis para os profissionais: “O volume rapidamente crescente de casos consumiu equipamentos e medicamentos das unidades de atendimento, obrigando os profissionais a fazerem escolhas que não estavam apenas ligadas ao cuidado, mas também a questões logísticas, muitas vezes forçando o médico a selecionar pacientes”, afirma.
Assim como Dra. X, muitos profissionais também viram as mensagens no celular dispararem com as dúvidas de pacientes sobre tratamento e prevenção. A prática médica e as pesquisas da área nunca haviam recebido tanta atenção. Entretanto, ao mesmo tempo que causou uma aproximação da população com os profissionais, também foi motivo de muita desinformação e aumento de fake news: “É até normal e saudável haver discordância do ponto de vista científico. Mas o que aconteceu foram polêmicas, de certa forma, inéditas e baseadas em opinião pessoal. Essa era uma questão que havia sido superada desde o século passado com o método científico balizando os trabalhos químicos e experimentais. Então, houve um retrocesso em relação à defesa do que seria científico ou do que deveria ser informado à população. Isso criou um clima de animosidade com colegas trabalhando no mesmo ambiente e com condutas completamente diferentes em relação à doença, medidas de proteção e tratamento. Ouvimos muito que seria só uma gripezinha, por exemplo”, lamenta Marco Bessa.
No entanto, as longas jornadas, o desgaste emocional e outros desafios da profissão não foram trazidos pelo vírus e já eram uma preocupação, sendo a taxa de suicídio entre os médicos de três a cinco vezes maior do que na população em geral. De acordo com Nerlan Carvalho, esse é um problema que vem desde os tempos de estudantes. E, para ele, há ainda uma resistência por parte dos profissionais em falarem sobre a saúde em geral, em especial a mental, o que agrava a situação. “O médico, por estar envolvido com saúde e ter um conhecimento maior das doenças, acaba negligenciando sua própria saúde e simulando ou dissimulando algumas doenças psicossomáticas”, afirma.
Marco Bessa acrescenta que é comum o profissional se acostumar a um estilo de vida sedentário que não tem o lazer, as férias e o descanso como prioridades. Em consequência disso, segundo ele, muitos tendem a não procurar ajuda e até a se automedicar. Entretanto, ele alerta, falar de saúde mental e pedir ajuda não deveria ser visto como sinal de fraqueza. “Existe um estigma, tabu e preconceito, como se a pessoa ter problema emocional fosse um sinal de fraqueza e de fragilidade, como se ela não fosse mais ser respeitada pelas pessoas. Os médicos, em particular, especialmente os homens, têm certa resistência para procurar ajuda, porque culturalmente ainda há uma visão muito distorcida do que é ser homem, um certo machismo, onde é prova de fraqueza e de debilidade a pessoa mostrar emoções”.
Depois de mais de dois anos de pandemia, as consequências na saúde mental médica ainda são sentidas. O que fazer diante disso? Para quem sofre, a melhor resposta é procurar ajuda. Para familiares e amigos, oferecer apoio e escuta. Já para os órgãos citados neste texto, a busca é sempre por melhorar as condições da profissão, por exemplo, garantindo que “os períodos de repouso e férias sejam rigorosamente respeitados, bem como pela observação de intervalos para recuperações física e psicológica para que sejam feitos como preveem os direitos trabalhistas”, afirma Marlus Volney de Morais. A pandemia pode ter agravado o quadro, mas o problema já estava bem embaixo dos nossos olhos e a necessidade está clara: é preciso cuidar de quem cuida.
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