Entrevista: Questões legais na saúde

rol taxativo e exemplificativo

Reflexões sobre os debates levantados pela Agência Nacional de Saúde (ANS) envolvendo o rol taxativo e exemplificativo

A convite da Revista Ampla Unimed Paraná, o desembargador do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, João Pedro Gebran Neto, apresenta o contexto das decisões judiciais sobre a temática do rol taxativo e exemplificativo na perspectiva dos planos de saúde e dos usuários.

Revista Ampla – O senhor poderia apresentar um panorama sobre o rol taxativo e exemplificativo relacionado aos planos de saúde?

João Pedro Gebran Neto – É importante destacar a relevância do debate sobre o rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), seja em face da insegurança jurídica que o tema apresentava, vez que parte da jurisprudência dizia ser taxativo e outra parte exemplificativo, seja pela importância para os usuários dos planos de saúde. O mais curioso é que tanto as decisões judiciais que adotavam uma solução, quanto as que defendiam solução oposta, fundavam-se na defesa do usuário, divergindo se a perspectiva era coletiva ou individual, respectivamente.

Sempre tive a compreensão de que a existência de um rol de atendimento mínimo imposto às operadoras de planos de saúde consiste numa defesa dos consumidores, vez que nenhum contrato pode ofertar menos do que está relacionado pela ANS. Essa garantia é fundamental aos consumidores, pois evita a oferta ao mercado de planos despidos de conteúdo concreto, com atendimentos pífios, ou apenas de previsão de custeio de itens simples e baratos, deixando o consumidor desabrigado nas situações realmente importantes. De outro lado, também é uma garantia reguladora do sistema de concorrência, porque todas as operadoras vão ser obrigadas a prestar, minimamente, os mesmos serviços, sendo possível a contratação de serviços adicionais. Essa regulação equaliza os produtos, permitindo maior concorrência entre os diferentes planos, com disputa de mercado e a consequente redução de valores.

É nesse cenário que se debate sobre esse rol ser taxativo ou enumerativo, sendo certo que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) deu relevante passo em direção ao reconhecimento da taxatividade, ainda que preveja uma cláusula de abertura para situações excepcionais. A questão ainda não está definitivamente decidida, cabendo recursos internos no STJ, bem como uma previsão de julgamento do tema pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Também o Congresso Nacional está discutindo o tema, tendo sido aprovada na Câmara de Deputados um projeto de lei (PL 2033/22) que impõe à ANS revisar o rol sempre que houver aprovação de novas tecnologias pela ANVISA, fixando condições. *O projeto de lei ainda precisa ser apreciado pelo Senado Federal.

Revista Ampla – Essa questão vem sendo, principalmente, abordada na perspectiva dos planos de saúde, porém há implicações no Sistema Único de Saúde?

João Pedro Gebran Neto – A discussão sobre a taxatividade do rol de cobertura da saúde suplementar traz reflexos sobre o SUS, principalmente na perspectiva da judicialização da saúde. Se determinada pretensão do consumidor/paciente não for objeto de cobertura pelo plano, muito provável que ela se volte ao SUS, buscando na saúde pública aquilo que não obteve junto à saúde suplementar. Essa me parece uma característica da judicialização da saúde, porque todas as pretensões do paciente, a partir da orientação médica, sempre que não cobertas pelo plano de saúde ou não prevista na política pública de saúde, têm sido objeto de demandas judiciais.

Em recente manifestação, o Ministro da Saúde Marcelo Queiroga indicou que a judicialização contra a União, para atender cerca de 6 mil usuários do SUS, já ultrapassa o montante anual de R$ 2 bilhões, valor próximo de todo o dispêndio anual com as farmácias populares, cuja cobertura é para os mais de 200 milhões de brasileiros.

Sobre essa perspectiva, parece que o foco precisa se voltar sobre a construção de políticas públicas e regramentos adequados, tanto para a saúde pública quanto para a saúde suplementar, como a discussão de o que incorporar, qual o tempo de duração do processo de incorporação, qual a capacidade do Estado para arcar com novas tecnologias, discussão sobre elevados graus de evidências científicas, dentre outros temas. E, esses pontos, para mim, deveriam passar ao largo da chamada judicialização da saúde, porque estão ligados às políticas públicas e os debates técnicos.

Revista Ampla – O senhor acredita que diante desse cenário, e entendendo as mudanças e transições da sociedade, será necessária uma revisão e até atualização do rol taxativo pela ANS de forma mais frequente?

João Pedro Gebran Neto – O rol é uma garantia do consumidor e das operadoras de planos de saúde, permitindo higidez e previsibilidade ao sistema. Um rol aberto certamente traria muito mais problemas que vantagens para ambas as partes, podendo, inclusive, retirar da proteção da saúde suplementar muitas pessoas, dada inexorável elevação de custos, decorrente do aumento dos riscos imprevisíveis para as operadoras.

Reconhecida a taxatividade, é indispensável que a ANS promova revisões sistemáticas na relação de cobertura. Isso não decorre exclusivamente da inovação tecnológica, mas da evolução do conhecimento científico sobre evidências, revisões nas avaliações de tecnologias, retiradas de medicamentos do mercado, novas revisões sistemáticas e metanálises. A dinâmica da ciência, especialmente médica e farmacêutica, a descoberta de novos insumos e técnicas, novos medicamentos, novos equipamentos, tudo está a exigir frequentes atualizações.

E, nesse ponto, a Lei nº 14.307, de 03 de março de 2022, trouxe importante regramento sobre o processo de atualização de cobertura no âmbito da saúde suplementar, inclusive instituindo comissão específica para exame de evidências científicas, avaliação do custo-efetividade das novas tecnologias e a análise do impacto financeiro no caso de ampliação da cobertura. Também no projeto de lei antes referido, se aprovado no Senado Federal e promulgado, criará critérios para a revisão do rol.

Revista Ampla – Como o senhor avalia os impactos para as prestadoras e os beneficiários?

João Pedro Gebran Neto – Considerando o que pontuei anteriormente, entendo que a decisão do STJ sobre a taxatividade do rol confere maior segurança jurídica ao sistema de saúde, inclusive e especialmente à saúde suplementar.

É certo que a solução do STJ prevê cláusulas de aberturas, possibilitando a imposição de obrigações “extra rol” quando presentes condições especificadas na decisão. Isso poderá acarretar novas discussões administrativas e judiciais, mas certamente o número de lides será muito menor do que atualmente.

Às prestadoras haverá maior previsibilidade sobre aquilo que devem fornecer. Do ponto de vista dos consumidores, certamente ficarão mais atentos quanto às coberturas adicionais que pretendem que seus contratos contemplem.

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Revista Ampla – Como caminham as modulações do STJ para esses casos e as exceções da aplicação do rol taxativo?

João Pedro Gebran Neto – Embora o STJ, no último dia 08 de junho do corrente ano, tenha apreciado a questão por sua Segunda Seção, os votos dos ministros ainda não foram publicados até a presente data.

Todavia, o resultado da sessão foi proclamado, quando se declarou que o rol é taxativo, com a abertura da seguinte cláusula de exceção:

“não havendo substituto terapêutico ou esgotados os procedimentos do Rol da ANS, pode haver, a título excepcional, a cobertura do tratamento indicado pelo médico ou odontólogo assistente, desde que:

  1. não tenha sido indeferido expressamente, pela ANS, a incorporação do procedimento ao Rol da Saúde Suplementar;
  2. haja comprovação da eficácia do tratamento à luz da medicina baseada em evidências;
  • haja recomendações de órgãos técnicos de renome nacionais (como CONITEC e NATJUS) e estrangeiros;
  1. seja realizado, quando possível, o diálogo interinstitucional do magistrado com entes ou pessoas com expertise técnica na área da saúde, incluída a Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar, sem deslocamento da competência do julgamento do feito para a Justiça Federal, ante a ilegitimidade passiva ad causam da ANS.”

Embora o STJ tenha julgado a questão, ainda não há solução definitiva, e o julgamento ainda não está concluído, bem como o Supremo Tribunal Federal foi chamado a debater a questão.

Há, ainda, no STF, processos sobre o tema previstos para os dias 26 e 27 de setembro. No Congresso Nacional a via legislativa aborda a questão, o que demonstra que a solução definitiva ainda pode demorar.

Revista Ampla – Quais foram as principais motivações para a ocorrência dessa determinação?

João Pedro Gebran Neto – A ausência da publicação dos votos não permite que conclusões seguras sejam firmadas sobre os fundamentos para a solução final, mas imagino que seja possível pontuar:

  1. a existência até então de posições divergentes entre as duas Turmas do STJ, ambas por unanimidade, impôs que uma solução intermediária viesse a ser proposta, de modo que a maioria se formasse em favor de uma das proposições. Por isso, a fixação de uma das teses, com cláusula de abertura, pode ter sido a solução possível. No ponto, parece-me que a medida provisória que reviu o procedimento de revisão do rol, convertida na Lei nº 14.307/2002, foi um gatilho positivo para a adoção de uma tese;
  2. ainda, o precedente do STF no Tema 500 com Repercussão Geral (firmado no RE 657718) sobre a concessão judicial de medicamentos sem registro na ANVISA certamente colaborou na construção da solução do STJ, onde igualmente foi criada uma cláusula de exceção para regra geral de não fornecimento de medicamentos não registrados na agência.

Embora os votos não estejam publicados, esses dois fatores devem ter contribuído para a determinação final, com uma solução firmada na taxatividade, mas com abertura para situações excepcionais. Soluções não definitivas e com delimitações imprecisas certamente não encerram os debates, o que pode ser criticável. Entretanto, soluções firmadas em regras do tudo ou nada, em questões complexas como o direito à saúde, também podem ensejar críticas, estarem sujeitas a revisões e, por vezes, serem injustas.

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Obs.: Esta entrevista com o desembargador João Gebran Neto foi realizada em início de agosto. No fechamento desta edição da Revista Ampla, em início de setembro, outros desdobramentos já haviam ocorrido, entre eles a publicação da decisão do STJ, no dia 03/08/2022, a aprovação pela Câmara dos Deputados do Projeto de Lei nº 2033/2022, também em 03/08/2022 – o qual foi incluído na matéria – e a apreciação/aprovação do referido Projeto de Lei pelo Senado, que acabou ocorrendo no dia 29 de agosto. Aguardava-se apenas a sanção ou o veto presidencial.

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