Hora de colocar na balança a proposta de Open Health

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Entre possibilidades e desafios, o conceito Open Health abre um leque de discussões sobre integração e acesso a dados de saúde da população

Quando o SAMU chega ao local do acidente, o paciente está desacordado. Após os primeiros socorros, os profissionais da ambulância o levam até o hospital. Ao dar entrada com o nome no documento de identificação, a equipe do setor de Emergência baixa as informações básicas sobre a saúde do indivíduo e logo descobre que ele é alérgico a uma série de medicações e que faz tratamento contínuo em uma instituição privada. Elementos que levam a um caminho alternativo e seguro para o tratamento dali em diante, mesmo sendo a primeira vez do paciente nesse hospital.

A descrição da cena acima é fictícia. No entanto, pode se tornar uma realidade no Brasil, a partir da implementação do Open Health – sistema que permitiria a troca de informações relativas ao setor de saúde entre hospitais, laboratórios, clínicas, convênios e demais serviços cadastrados, públicos e privados. Ou seja, nessa concepção de “Saúde Aberta”, os profissionais teriam à disposição um grande banco de dados para aprimorar o atendimento, a partir do acesso automatizado do histórico do paciente.

A proposta de Open Health foi apresentada em janeiro deste ano, pelo ministro Marcelo Queiroga, como uma iniciativa do Ministério da Saúde. A ideia é inspirada no conceito de Open Banking, implementada pelo Banco Central em 2021.

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Open Health: de um lado, as vantagens

De acordo com Caroline Amadori Cavet – advogada especialista em direito da saúde e médico-hospitalar, diretora executiva do Grupo de Pesquisas em Direito da Saúde e Empresas Médicas e membro relatora da Comissão de Direito Digital e Proteção de Dados da OAB/PR (gestão 2022/2024) –, o Open Health pode trazer maior transparência ao setor de saúde e inúmeros benefícios.

Entre as principais vantagens, ela cita: otimização de recursos (exames, tempo de atendimento por profissionais, etc); padronização de protocolos de atendimento e serviços; agilidade no atendimento adequado ao paciente; redução de custos e do preço do atendimento; maior assertividade no tratamento despendido; e planejamento de políticas públicas.

“A estruturação de dados possibilita a extração de informação, de forma célere e com maior efetividade, proporcionando, em termos globais, o adequado direcionamento de recursos públicos ou privados, e em termos clínicos e individualizado, o histórico clínico completo (visão do todo do indivíduo) e maior eficácia no atendimento, no diagnóstico, na prevenção e no tratamento de doenças”, explica.

Tendo em vista as dimensões continentais do território brasileiro, bem como a desigualdade social que dificulta o acesso à saúde e à educação em diversas comunidades vulneráveis, essa tecnologia – se bem empregada, a serviço do interesse público – tem o potencial de melhorar o atendimento e trazer luz às necessidades da população. Assim como os serviços de telemedicina e telessaúde, mediados por plataformas virtuais, contribuíram para o enfrentamento da pandemia de Covid-19 e vieram para ficar.

Open Health: de outro lado, os desafios

dados de saúde
Caroline Amadori Cavet – advogada especialista em direito da saúde e médico-hospitalar

Do ponto de vista técnico, a implementação do Open Health traz consigo a questão da interoperabilidade. Ou seja, da integração de sistemas públicos e privados de forma segura e estável, levando em consideração soluções para os riscos estruturais envolvidos (como eventuais falhas sistêmicas, no fornecimento de energia, telefonia ou de internet).

“Outro desafio refere-se a questões organizacionais, tais como a padronização quanto aos acessos, com delimitação quanto aos níveis de acesso à informação de acordo com a necessidade e pertinência deles e a sua rastreabilidade”, alerta Caroline Cavet.

No entanto, para a advogada, o aspecto mais importante a ser observado é a responsabilidade quanto ao uso de dados do cidadão. “O desafio mais delicado, em um sistema em rede, refere-se ao dever de privacidade e confidencialidade de dados pessoais sensíveis de saúde e genéticos, resguardados pela prática médica, conforme preconiza o Código de Ética Médica”, destaca.

Em seu 11° artigo, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) veda o tratamento desses dados, com exceção de casos com consentimento específico do paciente ou para execução de políticas públicas pelo Estado. Em linhas gerais, o objetivo da vedação é evitar formas de controle político, social e econômico que possam levar a casos de discriminação e exclusão de pessoas.

[VÍDEO] Veja também: Saiba mais sobre Open Health

A quantas anda no Brasil…

No cenário brasileiro, o que já existe é a Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), instituída pela Portaria GM/ MS 1.434/20, para auxiliar na comunicação entre os pontos da Rede de Atenção à Saúde do SUS. No entanto, ela ainda está em desenvolvimento. A expectativa do Ministério da Saúde é finalizar a implementação até 2028, como uma rede que conectará atores e dados de saúde em todo o país.

O Projeto de Lei nº 3.814/20 – que dispõe sobre a digitalização e a utilização de sistemas informatizados para a guarda, o armazenamento e o manuseio de prontuário de pacientes – é mais uma iniciativa que está em trâmite e pode contribuir na direção da integração.

Embora alerte para os desafios, Caroline Cavet acredita que a transformação digital da saúde é uma realidade que já permeia a sociedade brasileira. “Os avanços tecnológicos atrelados à prática médica despontam como promessa de promoção da saúde universal e social, com campo fértil para o seu desenvolvimento no Brasil e no mundo, com a finalidade de otimização de recursos e a maior assertividade e agilidade no atendimento ao paciente”, observa.

No que se refere especificamente ao Open Health, é preciso aguardar as cenas dos próximos capítulos. Surgiu como uma proposta de Medida Provisória, mas isso pode mudar e se tornar uma lei específica. Sem dúvida, poucas páginas não dão conta de esgotar a discussão sobre essa novidade complexa e instigante. Mas nos deixam mais preparados para acompanhar o debate e as notícias sobre o que está por vir.

Exemplos ao redor do mundo

Ao redor do mundo, já existem sistemas baseados no conceito do Open Health. Tanto no âmbito público quanto no privado. Cada uma com suas particularidades.

Pode-se começar falando do Google Dataset Search, lançado em 2018 pelo Google, disponível a um clique. Uma ferramenta gratuita que permite que os próprios usuários alimentem bases de dados sobre temas diversos e criem grupos de informações públicas ou com acesso pago. Já no ambiente acadêmico, há o exemplo do Stanford Medicine, com aplicação relevante em termos de pesquisa na área da saúde. “Em ambos os casos, o compartilhamento de dados é anonimizado e seu uso é secundário, ou seja, não está vinculado ao atendimento de um paciente”, explica a advogada Caroline Amadori Cavet.

No Reino Unido, desde 2014, órgãos de saúde compilam os registros de pacientes no Spine, espécie de banco nacional de dados. A plataforma gera relatórios clínicos (Summary Care Records) que podem ser acessados por unidades clínicas e pelo próprio usuário.

Na Austrália, há a experiência concreta do My Health Record (MHR), sistema implementado desde 2016, que hoje engloba informações de mais de 22 milhões de pessoas. Ele contém informações clínicas resumidas dos cidadãos australianos, com exceção daqueles que optaram por não integrar o sistema.

“O MHR pode ser acessado por toda a cadeia de saúde, exceto as seguradoras, para uso secundário, o que acarreta a melhora no atendimento clínico, as pesquisas e estudos randomizados; e o planejamento dos ciclos de desenvolvimento tecnológico”, descreve Cavet.

Também já se tem conhecimento de mais aplicações inspiradas pelo conceito de Open Health nos Estados Unidos, no Canadá e no México.

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